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Os duzentos anos de Camilo Castelo Branco, esse novíssimo velho, puseram-me a pensar noutros duzentos anos: a minha infância. Eu frequentava o alfarrabista cujo dono era uma espécie de monstro imortal. Parecia-me antigo como os livros, mais velho do que eles. Os berros, que se ouviam da rua, davam ao ofício uma aura de interdição que me fascinava. Podíamos sair da loja com um livro ou um sopapo.
Não sei se ele teria o mau-feitio de algumas boas almas, nem se estava a par de que saíra inteiro de um livro de Camilo. Sei que a minha avó regateou, o homem sentiu-se insultado, os berros chegaram ao outro lado da rua, os dele e os dela, e por fim surgiu uma terceira edição do “Amor de perdição” a preço de saldo. “E ainda sai daqui a sentir-se aldrabada”, resmungou o homem.
Não se tratara de uma compra, era antes um resgate, uma fuga da prisão. Já tínhamos saído e ainda ele se emaranhava nuns rancores estranhos que talvez se devessem à importância dos livros, suponho, ou de uma performance que dava à venda um sentido de perda. Como se o tivéssemos roubado. Lançou lá de dentro para mim: “Trata bem da Mariana, ouviste?”
Enquanto eu lia, o alfarrabista, intrometido, continuava a falar em defesa da Mariana, desconfiado do amor de Simão e Teresa, fatal demais para existir fora de páginas que chegaram a Camilo pelas mãos de Shakespeare. Um amor que existe como medida da contrariedade.
Pelo contrário, o amor da Mariana tinha corpo: aceitou Simão na proximidade, tratou-lhe das feridas, foi carnal no acto de curar. Deu-lhe de comer. Nesse sentido, viveu com quem amou. E Mariana é a única que verdadeiramente não se deixa apagar. Simão e Teresa não morrem, esfumam-se em amor, extinguem-se. Mariana decide morrer.
Tempos depois, voltei ao alfarrabista. Berrava como sempre, como sempre dizia a alguém que este mundo é aldrabar e ser aldrabado. E punha-se entre os compradores e os livros como se fosse um carcereiro. Preparava-se para nova investida quando me viu.
Deteve-se e pediu-me para o relembrar por quanto vendera o livro. Eu disse-lhe que a minha avó pagara não sei quantos euros. E ele voltou a berrar, insultado com a própria generosidade: “Onde tinha eu a cabeça? Uma pechincha!” Depois piscou-me o olho, todo ele suavizou como se estivéssemos os dois por dentro de um segredo. Os dois conhecíamos a Mariana. Concordei, era uma pechincha: cada livro tem o seu pequeno segredo - conhecê-lo sai sempre barato.
*O autor escreve segundo a antiga ortografia