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Os resultados das eleições foram uma desesperança tão grande que temos de nos agarrar aos restantes 77,44% dos eleitores que votaram noutra coisa. Pela primeira vez, congratulo até as pessoas que olharam para o boletim com inúmeros partidos e preferiram usar a caneta para desenhar um pénis. Chama-se a isto ver o copo meio cheio. Isto porque desde domingo que estamos a pedir ao rapaz do bar para continuar a enchê-lo. O Chega prometeu um abanão e isto foi de tal maneira que até me admirei não ver o Moedas de colete da Proteção Civil a apelar à calma.
Pelos vistos, foi preciso o partido de extrema-direita ter conseguido ser o segundo partido mais votado para que, vários comentadores políticos, pensassem: “Será que nos escapou qualquer coisa?”. De repente, a humildade abateu-se sobre nós e o que foi ver esta semana declarações públicas a principiar com “temos de sair da bolha”. Haverá uma bolha? Haverá várias bolhas? Será altura de irmos buscar um alfinete e um algodão para rebentar as bolhas? O que é uma bolha? Bolha. Bolha. Creio que a discussão do momento se trata de uma parte do país se aperceber de que existe mais país. Pessoalmente, não gosto da expressão “o país real” porque, além de ser altamente redutor, parece mostrar que há um país faz de conta quando na verdade o que temos são realidades cada vez mais díspares. E isto é que me parece o ponto importante. Vamos lá ver, se fosse pelas inclinações dos meus amigos, a Esquerda tinha uma vitória retumbante e é possível que o Rui Tavares fosse o próximo primeiro-ministro de Portugal. Por outro lado, se fosse pelas inclinações da minha família, é provável que a próxima ministra da Cultura fosse sua excelência a Parrachita. O Chega diz que é muito pela família, mas tudo isto é capaz de destruir famílias numa conversa ao jantar.
Este fenómeno em Portugal não é muito diferente do que está a acontecer lá fora. As pessoas são por quem é capaz de as fazer acreditar que algo pode mudar a sua realidade para melhor e, neste caso, sentem que tanto o PS como o PSD não estiveram à altura. A habitação é um problema, não há reformas na Saúde nem na Justiça, a conta do supermercado está cada vez mais elevada, os salários não acompanham, os serviços públicos degradam-se. Os jovens – que em tempos tinham o Bloco de Esquerda como o partido antissistema – transformam-se agora em fiéis seguidores das ideias mais conservadoras e as gerações mais velhas que se sentem injustiçadas acreditam que os responsáveis pela sua situação são os subsidio-dependentes. É mais fácil provocar as pessoas desta maneira para que não olhem para cima, para quem é realmente responsável pela situação. Estes eleitores são uma mistura de pessoas de classes sociais baixas e pouca escolaridade a quem falta quase tudo e betos de 27 apelidos que têm saudades de um país que perpetuava a sua situação de privilégio. É um partido agregador de descontentamento, preconceito e pessoas que escrevem em maiúsculas em caixas de comentários de notícias. Se lerem o programa eleitoral percebe-se rapidamente que não há soluções sérias para resolver os problemas do país e o que nos vendem são ideias que atentam contra a decência e a constitucionalidade baseadas em meter as pessoas umas contra as outras. E, aparentemente, para 22,6% dos eleitores, elas resolvem os problemas de estarem frustrados com aquele colega no trabalho, com o marido que chega a casa tarde e a más horas, os filhos que não querem saber da escola e o caraças do cão que só sabe ladrar de noite e não deixa ninguém dormir.
Com estes resultados, depois do sair da bolha, arranca agora o "refletir". Teria sido interessante que os partidos tivessem feito isto ANTES de uma eleição, mas pronto, mais vale tarde do que nunca, já que é possível que agora as eleições sejam uma tradição anual. E como é muito provável que a extrema-direita tenha beneficiado desta tradição de mandar governos abaixo por tudo e por nada, portanto, resta-nos ter fé nestas reflexões. À minha volta, na noite de domingo, reparei no sentimento de surpresa. Mas aguentamos todos a azia como mulherzinhas e homenzinhos. Rijos, sem dramatismos nem maçar estupidamente o Serviço Nacional de Saúde.