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Não há nenhum acordo de salvação nacional. O que se está a negociar é uma espécie de tréguas políticas até às eleições de 2014. De substancial finge-se que há uma paz que não assanhe os mercados porque eles leem notícias com três linhas e agitam-se quando existe no título as palavras "instabilidade" ou "eleições antecipadas". Salvação nacional é outra coisa: é rendimento familiar disponível para haver crescimento da população - a mais importante de toas as medidas. Sem isso não haverá sustentabilidade económica nem geracional e o Estado e a Segurança Social vão à falência a médio prazo. Salvação nacional é não vender o território ao primeiro oportunista mineiro ou energético que contamine a nossa maior riqueza a prazo (rios e lençóis de água pura subterrâneos ou a costa portuguesa e os recursos marinhos). Onde se está a discutir estes assuntos? E, no entanto, é isto que nos vai garantir crescimento e economia para pagar a dívida aos mercados. Só que nada disto é de curtíssimo prazo. Portanto não interessa.
Se olharmos para as crises dos últimos 100 anos vemos três protagonistas estruturais. O primeiro deles Salazar, quando na década de 30 começa a consolidar as contas do país após quase duas décadas de erosão política e económica (pós-República). O ditador deixou-nos, contudo, duas consequências (entre outras) dos seus quase 50 anos de ditadura: a falta de alargamento da educação que nos provocaram uma falta de qualificação dos recursos humanos e uma resignação política paroquial que enfeudou os portugueses no seu minifúndio psicológico.
É num momento de ajustamento com a história (nomeadamente no fim inevitável das pretensões sobre as ex-colónias) que Mário Soares emerge como a figura do Portugal democrático. Mas paga a fatura: é ele que tem de fazer face a algumas das bancarrotas, através do apoio do Fundo Monetário Internacional (FMI) para que os portugueses não voltassem à fome salazarista.
As bancarrotas da década de 70 e 80 foram o preço das conquistas proletárias do 25 de Abril, com enormes crescimentos salariais e novos direitos laborais não sustentados na realidade das empresas. Soares reequilibra o país através das desvalorizações competitivas do escudo (que enfraquecem os salários, desfazendo parte das 'conquistas de Abril') mas não se perde tudo: Portugal chega à CEE como uma democracia consolidada, não vulnerável a um controlo soviético e entra no clube dos 'países desenvolvidos'.
É neste contexto que vale a pena olhar para o tempo de Cavaco Silva - 10 anos de primeiro-ministro e quase 10 de presidente da República. São já quase 20 anos em 40 de democracia. Quando olhamos para o pântano atual vemos dois traços de arquitetura dos governos maioritários de Cavaco (1987-1995). O primeiro, porque Portugal descobriu o sentido europeu do Estado, até na dimensão, com a multiplicação da rede de prestação de serviços públicos modernos e, consequentemente, aumento do número de funcionários. Hoje tornaram-se excedentários face à crise.
O segundo resulta do grande investimento em infraestruturas que tornaram possível o atual Portugal virtuoso do turismo, das tecnologias de informação e até das estruturas económicas da exportação (empresas e portos - infelizmente Cavaco esqueceu sempre a ferrovia). Outros, como Guterres, Barroso, Santana e Sócrates, quiserem continuar/amplificar/concluir o "novo Estado" sem anteciparem (podiam?) que as dívidas em euros não têm taxas de juro solidárias garantidas pela União Europeia aos países mais jovens/fracos/periféricos.
A nossa conta atual tem maus investimentos, corrupção e muitas péssimas decisões ao longo de 40 anos de democracia. Mas, no essencial, isso é um grão de areia quanto à conta geral. E ela teria de existir para sermos o que somos hoje face ao tempo perdido do século XX, sobretudo no salazarismo. Os nossos credores têm de perceber o muito que fizemos em pouco tempo e darem-nos mais tempo. Nós temos de perceber que não podemos beneficiar de um Portugal moderno sem custos. Mas não foi caminho perdido o que conseguimos até aqui.