Perante a vida de alguém não pode haver ideologia ou pátria. À sobrevivência de uma pessoa abatem-se necessariamente culturas, tradições ou formalidades, para se colocar apenas a questão de saber a que altura estamos de sermos humanos. Para o reconhecimento da nossa própria humanidade, não pode haver dúvida acerca da legitimidade de cada um à vida. Como se diz, nenhuma vida é ilegal.
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Eu não poderia deixar de juntar a minha voz à defesa de Miguel Duarte, o jovem que, voluntário na ONG alemã Jugend Rettet, integrou o navio Iuventa que terá auxiliado a salvar mais de 14 mil vidas. Por mais que vivamos, na esmagadora maioria, não importaremos para alguém tanto quanto este jovem importou para milhares de pessoas. Seremos uns pálidos exercícios de humanidade, oportunidades acomodadas ou mesmo desperdícios. Os heróis são de outro jeito. Aqueles de que rezará a melhor História, os que inspirarão todo o futuro. São de outro jeito. São de gesto, porque a nossa comoção diante dos vídeos de gatinhos do Facebook ou do Instagram não nos eleva à condição de sensíveis, apenas nos revela o equívoco, o modo como colocamos o coração no lugar errado.
Passamos por um tempo de absurdização dos valores. O elementar parece ser impercetível para grande número de pessoas, permitindo que o cinismo abata a resistência e a esperança, ou que esperar e resistir seja sobretudo uma equação económica. Aceitamos paulatinamente a limitação das nossas sensibilidades até que um dia não sobre nada para nos sensibilizar senão, exatamente, esses vídeos que não trazem conteúdo, são só fugazes alusões a uma ternura inócua.
Se houvesse em cada um a coragem de uma dedicação genuína ao outro talvez nos entendêssemos facilmente como muito maiores do que julgamos ser. Apequenados por nossas pequenas tarefas, balizados por burocracias que consideramos forma de segurança e estabilidade, a maioria de nós nunca se haverá de deparar com o olhar extremo de alguém que é salvo, de alguém que sobe por nosso braço como pelo braço de um Deus subitamente presente, subitamente operante, um Deus que atendeu à prece. Esse Deus, eu sempre soube, só poderemos ser nós. Somos nós os agentes de qualquer redenção. Quero dizer, podemos ser nós, como Miguel Duarte foi. Deixar que seja preso é aprisionar-nos a todos. Capturados pela hipocrisia insuportável de uma política cada vez menos ocupada com ser simplesmente decente.
Escritor