Conta Suetónio que Nero, acossado e abandonado, pediu a um dos soldados que restavam da sua guarda pessoal que o matasse, e que, face à recusa deste, ter-se-á lamentado (cito de cor): "É o fim, já não tenho amigos nem inimigos".
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Os caminhos da memória e da livre associação de ideias são, como os do Senhor, insondáveis: lembrei-me de Nero a propósito do risco de extinção que paira sobre essa sólida instituição nacional que é o atestado médico. De facto, parece já nem a indecência complacente estar a salvo da generalizada revisão de valores há anos em curso na sociedade portuguesa.
Bons tempos em que um juiz me dizia, quando fui ao seu gabinete justificar o facto de ter chegado cinco minutos atrasado à chamada das testemunhas para um julgamento mais uma vez adiado: "Apresente atestado médico". Isto comigo ali, viçoso e de boa saúde...
Agora, depois das dúvidas sobre centenas de atestados com que outros tantos alunos de Guimarães faltaram às Provas Globais, a Ordem dos Médicos vai investigar os atestados passados a 35 polícias da esquadra das Mercês (Lisboa) que adoeceram simultaneamente após a condenação de dois colegas por agressão a um cidadão detido.
Só não se poderá, como Nero, dizer que "É o fim, já não há decência nem indecência", pois os processos de Guimarães acabaram em nada "por falta de provas" e estes terão decerto o mesmo português e brando destino. Talvez nem tudo esteja perdido.