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Saí do estúdio para o ar tépido de uma noite de Outono, reconciliado comigo, com o Mundo, com o realizador João Canijo, com o défice externo e o financiamento público da cultura, consciente de que pelos critérios de produtividade dos actuais governantes não haveria bilheteira que alguma vez pagasse o quanto vale esta obra-prima. "Sangue do meu sangue" é um filme belíssimo que olha o nosso Mundo com uma sobriedade enternecida e cúmplice, que exorciza os nossos fantasmas e desarma os nossos mais íntimos demónios. É uma tragédia clássica. A civilização foi-se erguendo ao longo dos milénios, precisamente, por este contínuo refazer dos mitos e das obsessões elementares que os gregos originalmente encarnaram nos deuses do Olimpo ou transpuseram para heróis terrenos - os habitantes desta superfície imprecisa onde nos achamos, entre o céu e o inferno. As personagens da tragédia de João Canijo habitam os cenários e interpretam os papéis destes humanos. Márcia, encarnada por Rita Blanco, a velha "mãe solteira" com filhos de diferentes pais e um amante terno e solícito. O enredo de pecados secretos e paixões inocentes que desemboca num amor interdito. O brilho e a miséria do quotidiano das drogas, do tráfico e da prostituição. A tia maternal que se sacrifica pelo sobrinho jovem e incauto que, por seu turno, lhe sacrificará uma vida. O traficante de droga que cuida com paciente desvelo as suas filhas, logo que "sobe o pano" e o "teatro" começa.
Todos cumprem com sublime humanidade o destino inelutável que lhes foi urdido pelo realizador, num espaço sufocante e promíscuo, atravessado por conversas alheias e ruídos estranhos, num "interseccionismo" de reminiscências pessoanas, como em "Hora absurda" -"Minha ideia de ti é um cadáver que o mar traz à praia..., e entanto / Tu és a tela irreal em que erro em cor a minha arte...". O "karaoke" da discoteca lisboeta e os seus intérpretes do Bairro do Padre Cruz são os mesmos que delicadamente me ensurdecem nas noites de sexta-feira, aqui, na associação recreativa da minha rua. A desmesura dos edifícios desta nova "urbanidade", com abismos insondáveis cavados sob esvoaçantes viadutos, contrasta com a exiguidade do interior das habitações, os compartimentos minúsculos sobrepostos no ecrã, os contornos desfocados, as camas partilhadas e, incrustada na cozinha, a mesa onde os comensais se acotovelam com os seus ressentimentos e afinidades, os seus medos e os seus sonhos. Uma pobreza exposta com respeito e seriedade, sem pieguice, sem cosméticas grotescas nem piedosos eufemismos. João Canijo oferece-nos, com grandeza e dignidade, o espectáculo da nossa miséria... para nosso gozo e reflexão.
Saí para essa noite amena de Outono reconciliado com João Canijo. De relance, tinha-o surpreendido numa entrevista para a televisão onde parecia contestar que os gregos actuais de alguma forma pudessem representar "os gregos antigos", alegadamente, por estes terem vivido, durante alguns séculos, sob o domínio turco. Uma conclusão algo precipitada porque os turcos otomanos foram os herdeiros históricos do Império Romano do Oriente, em meados do século XV. Porque a Grécia reconquistou a sua independência política por mérito dos gregos que se mobilizaram heroicamente contra a ocupação nazi durante a II Guerra Mundial, enquanto os portugueses e os espanhóis se furtavam cobardemente atrás da "neutra" cumplicidade de Francisco Franco e Oliveira Salazar, a participar no combate contra os fascistas italianos e os nazis alemães. Também por ser testemunho de muita ingratidão para com os gregos - que inventaram a tragédia que João Canijo tão bem soube reconstruir e actualizar em "Sangue do meu sangue". E, por fim, porque não devia escapar às artes performativas contemporâneas a dimensão trágica da extraordinária encenação que os gregos montaram neste último ano, a bem da ilustração dos povos europeus, para denunciar o absurdo e a barbárie das terapias de austeridade que estão agora em moda, a pretexto de erradicar a epidemia mais recente que dá pelo nome de "dívida soberana".