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Não se escolhe onde se nasce. Nada se escolhe quando as hipóteses são mais que muitas porque são absolutamente todas. Mas os que nascem e porque nascem têm o direito (e até o dever, alguns dirão) de escolher os que querem ter com eles, os que consideram afectivamente como "seus". É assim na amizade, na família, no país, nas selecções. Considero, como Eric Hobsbawm, que as nações, as nacionalidades e os nacionalismos não são naturais: foram alvo de naturalização. A globalização, e bem, só reforça o carácter destrutivo desta naturalização forçada a guerras de sangue. É a isso que continuamos a assistir em tantas selecções de futebol neste Mundial"14: ao fim do peso do sangue que consideramos como nosso. Não é de hoje. E é por isso que o debate da multiculturalidade e da multietnia deixou de fazer sentido, cedendo o seu lugar ao debate sobre as naturalizações e os seus limites. Nada que se aproxime à assassina frase de Blatter sobre "livrar as selecções dos invasores do Brasil", a propósito dos naturalizados, antes de procurar o Brasil onde menos democracia até dá jeito, segundo Jérôme Valcke. Como na Rússia. Como no Qatar. A Blatter, a vergonha de ser um canivete suíço.
Cada país sabe de si e tem as suas próprias regras para a naturalização de cidadãos. Mesmo no passado, quando os italianos de Vittorio Pozzo lançaram a rede aos que apelidavam de "oriundi" (filhos de emigrantes italianos pelo Mundo), por sinal uruguaios e argentinos, para serem bicampeões do Mundo e ouro olímpico nos anos 30. É claro que a FIFA tem que ter uma regra, respeitada pelas autoridades civis de cada país, futebol é futebol. A formulação fundamental da FIFA é relativamente simples: pode ser internacional quem vive há cinco anos no país de acolhimento e nunca disputou um jogo oficial pelo seu país de origem. Mas pouco interessa o regulamento quando a verdadeira questão prática do "fair-play entre nações" está no número. Faz sentido que uma selecção nacional seja, quase toda ela (como a selecção de futsal do Azerbaijão, metade brasileira) formada com naturalizados regulamentares? Ou fará sentido limitar o número de naturalizados, impedindo legítimos cidadãos de fazerem parte da causa comum através de uma decisão subjectiva que já tem um "numerus clausus" à partida como cutelo? A resposta não tem um meio-termo mas não pode correr pelos extremos sob pena de sacrificarmos a nossa afeição ou de levantarmos o espectro da xenofobia. Embora a selecção não seja um clube, o critério oportunista é o único que pode pôr em causa os afectos. Ainda aqui, um julgamento subjectivo. Não pode haver outro.
Olhando para as selecções europeias que chegaram aos quartos-de-final é curioso como evitaram que este Mundial se transformasse numa versão alargada da Copa América com "wild cards" de presença amigável para resto do mundo. Para além da qualidade intrínseca a cada uma delas, dois factores são comuns: suor e sangue. Suor, porque a Alemanha, Holanda, França e Bélgica correram que se fartaram sem desmontarem o sentido táctico que diferencia os jogadores de futebol das aves raras sem orientação, demonstrando toda a forma física que traziam na bagagem (num Mundial com condições atmosféricas tão díspares e com tantos quilómetros entre jogos, terá sido um factor decisivo). Sangue, porque todas elas são multiétnicas e já fazem esse caminho há anos. A Alemanha de Boateng, Klose, Podolki, Khedira, Ozil e Mustafi; a Holanda de Guzmán, Lens, Bruno Martins Indi, Wijnaldum, de Jong, Depay; a França de Benzema, Evra, Griezmann, Pogba, Sissoko, Matuidi, Sakho, Varane; a Bélgica de Courtois, Kompany, Lukaku, Hazard, Origi. É certo que cada caso é um caso e que pode haver mais ou menos hesitações ao cantar o hino. Mas como negar que Klose e Podolski são alemães quando, polacos, vivem no país de acolhimento desde os 7 e 2 anos de idade? Como não perceber que Ozil, embora tenha nascido na Alemanha, sempre afrontou a sua família exclusivamente turca para jogar pelo país que considera seu? Como não aplaudir que os irmãos Boateng joguem por diferentes selecções (Alemanha e Gana) porque o seu coração assim os dirige? Eu dispenso os testes de ADN, só não aprecio interesseiros.
Já assistimos a divisões e crises nas selecções e respectivos países à conta da multiculturalidade (a França no Mundial"10 ou a Holanda no Euro"96). Mas feito esse caminho, ignorar que o carácter multiétnico salvou as selecções europeias da hecatombe neste Mundial é não o ter sequer percebido. Provavelmente é nem ter percebido o Mundo.