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A véspera de São João é a mais bela noite do ano. Desde logo, faz-se de ruas cheias de portuenses felizes, o que pode parecer simples, mas em tempos de forte gentrificação dos bairros históricos, em que é cada vez mais raro ver gente local ocupando praças e esplanadas no centro da cidade e em que assistimos a uma descaracterização dos restaurantes e pequeno comércio local, é bastante reconfortante. Ver o povo a encher as ruas, com bailaricos e grelhadores, os tascos cheios até ao passeio, as mesas dos vizinhos dispostas em filas em pleno espaço público, com gente a partilhar o farnel e a colaborar na logística festiva, é uma imagem quase utópica numa cidade em que tudo é cada vez mais higienizado e formatado e não há lugar para a espontaneidade popular.
A festa de São João já era de liberdade antes do 25 de Abril, como a única noite do ano em que se podia circular livremente, num ritual dionisíaco que servia de escape para o aprisionamento dos outros 364 dias. Hoje, reforça-se como uma importante manifestação de resistência, neste projeto de cidade-cenário, parque temático para turistas, em que os portuenses não têm lugar, a não ser ao serviço.
Outra das coisas boas do São João é a comida: sardinhas ou febras na brasa, pimento assado, batata cozida, broa de Avintes ou pão, azeitonas e salada mista. Haverá melhor do que a simplicidade da gastronomia popular na era da comida que não é para comer, mas para degustar, da comida “isenta” disto ou daquilo, da comida sem identidade daqueles menus genéricos, com tostas de abacate e panquecas com xarope de ácer?
O São João vive de trajetos (e cada um tem os seus percursos-ritual), quer para ir ver o fogo a um sítio estratégico, quer para ir comer aquela fartura habitual, quer para ir ao bailarico mais animado, ou mesmo à rua onde se tem mais amigos, a festa faz-se dessas itinerâncias, com todas as paragens e desvios, para desfrutar dos encontros não planeados e das surpresas do caminho. Faz-se também de interações, ora porque a martelada no transeunte desperta sorrisos e bocas, ora porque o lançamento do balão implica um ajuntamento e há sempre quem passe a dar um bitaite, ora porque há muito convívio na fila da cerveja, tudo parece convidar ao convívio com o desconhecido, numa grande fraternidade festiva.
O São João é lindo e tem muitas das coisas que mais alegria pueril me provocam. Tem alho-porro e ervas aromáticas, foguetes e fogueiras, manjericos com rimas e cascatas com figurinhas de cerâmica. Além de que não há outra festa no país em que o povo encha o céu de estrelas para iluminar a sua festa. Esse atrevimento é só nosso!