Os centros históricos de Évora, Guimarães e Porto, todos classificados como Património da Humanidade, estão em polvorosa. Depois de tantos anos em que investimento e orgulho foram um só, com proprietários, autarquias e Governo alinhados no mesmo desígnio, eis que este último resolveu quebrar o prometido e desatou a cobrar um IMI antes isentado.
Corpo do artigo
O abandono a que alguns espaços das nossas cidades foram votados ao longo de tantas décadas, que conduziu a um nível de degradação física e social pouco digno, começou a ser invertido em Évora, Guimarães e Porto por via do movimento conjunto do Estado, câmaras e proprietários que resultou justamente na classificação dos respetivos centros históricos pela UNESCO. Esta coligação virtuosa tem sido uma fórmula ganhadora para todos.
O Estado, que aliás foi o maior responsável pela degradação das urbes quando congelou durante tantos anos as rendas, acabou por ser sensível à oportunidade que representam os centros históricos singulares. São ativos importantes no capital simbólico das cidades, constituindo-se como polos dinamizadores do turismo e da economia local, quando devidamente reabilitados. A distinção por parte de uma organização internacional coloca-os no mapa, pelo que é avisado criar as condições necessárias para o efeito. Isentar os proprietários de IMI enquadra-se nesta estratégia e foi visto como um investimento que em devido tempo geraria retorno.
As câmaras municipais são os motores da reabilitação urbana. Nos casos de Évora, Guimarães e Porto, as autarquias perceberam muito cedo que os seus centros históricos eram marcas únicas e irreplicáveis que importava preservar. No caso da cidade minhota, os autarcas optaram mesmo por uma estratégia de retenção da maioria dos residentes originais, muitos deles sem posses para as necessárias obras. Desenvolveram programas de apoio, disponibilizando projetos de arquitetura, materiais de construção e mão de obra. Casa após casa, praça após praça, os cascos urbanos lá se foram reabilitando e reconstituindo, numa relação de confiança com os proprietários.
Os atores centrais deste processo são inevitavelmente os residentes e os proprietários, que responderam ao apelo do Estado e das autarquias. O elemento aglutinador foi o sentido de pertença, o orgulho pelo reconhecimento da qualidade de um espaço em que vivem todos os dias. Estes são sentimentos que escasseiam na sociedade portuguesa. Por uma vez, cidadãos e governação confiaram uns nos outros e a obra aconteceu. Os centros históricos destas três cidades fazem as delícias de quem os habita e visita.
Pois o Governo português, que aqui representa o Estado, na sua fobia de taxar tudo o que mexe, resolveu passar a exigir o IMI aos cidadãos proprietários de imóveis nos centros históricos em causa, violando o acordo de isenção antes assumido. A nova interpretação da elegibilidade para efeitos de isenção, aliás contestada pelos autarcas de Évora, Guimarães e Porto, vai ao ponto de exigir o pagamento do imposto retroativamente. Num período de extrema austeridade, em que sobre um rendimento nominal dos portugueses progressivamente reduzido ainda se aplicam taxas de imposto pesadíssimas, ao nível do confisco os nossos cobradores de impostos atacam sem dó nem piedade. Não percebem, jamais perceberão, que esta despesa extra se vai repercutir na qualidade dos espaços, já que são euros retirados à conservação e à manutenção de imóveis muito especiais e sensíveis.
Mas a maior violação, péssima mesmo, é o Estado português deixar claro, uma vez mais, que não é pessoa de bem. Começa a instalar-se na sociedade um perigoso sentimento de que não se pode confiar no Estado. A relação do cidadão com este monstro, que em boa verdade devia estar ao serviço de todos nós, é sempre desigual, com o cidadão a ser esmagado pela máquina, normalmente através de uma simples carta sem rosto que chega das Finanças, do Tribunal, do Centro de Emprego ou da Segurança Social. No dia em que o Estado for o inimigo, grande parte dos cidadãos não vai querer pagar impostos, não vai acreditar na democracia e vai repetir até à exaustão que estar na política e na governação é sinónimo de ser desonesto e ladrão. É um caminho que vem sendo trilhado. Perigoso, muito perigoso.