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Os meus amigos sabem que tenho muitos defeitos. Um deles, e dos maiores, é não ter saudades do Porto. Desculpem-me os portuenses, desculpem-me, desculpem-me.
Prometo tratar deste assunto melindroso com delicadeza. Isto começou por causa da minha mãe, lisboeta empedernida que se exilou no Porto por amor ao meu pai. Cresci a ouvir declarações de adoração por Lisboa. Aos dezoito anos, fui à procura dessa cidade adorada. Desculpem-me os portuenses, desculpem-me, desculpem-me.
A culpa é da minha mãe - e minha, evidentemente, que por amor a ela acreditei que as suas saudades de Lisboa seriam o meu futuro. E eis que estou desde os dezoito anos alcantaramente, alfamamente, mourariamente longe do Porto. E em ridículos momentos, pequeníssimos, a comparar a Rotunda da Boavista ao Terreiro do Paço, a Avenida dos Aliados à da Liberdade. A gente cai e não sabe que caiu. Desculpem-me os portuenses, desculpem-me, desculpem-me.
Acresce a questão do sotaque. Durante a minha infância, no Porto diziam que eu era de Lisboa, em Lisboa que era do Norte. É de torcer a língua a qualquer um. Agora que vivi quase tantos anos em Lisboa quanto no Porto, sei lá por onde anda a minha língua, talvez no quilómetro 25 da A1. Desculpem-me os portuenses, desculpem-me, desculpem-me.
Mas subitamente, esta semana, aconteceu-me uma grande estranheza. Deu-se um volte-face. Senti ganas de me abraçar ao Porto, dizer-lhe: “Meu amor, perdoa a minha mãe!” Mas a estranheza maior foi as saudades terem chegado num carro de instrução.
Dei por mim a ver os vídeos filmados no interior dos carros de uma escola de condução que opera entre Ramalde e a Prelada, com eixo na Rua do Monte dos Burgos. Onde o aprendiz não parou no stop, procurei eu desesperadamente o meu irmão, quando ele se perdeu de casa. Onde o aprendiz não soube estacionar, galgava eu os passeios de bicicleta. Onde o aprendiz não soube dizer se o sinal era de passagem com, de ou para peões, passeava eu com o meu pai.
Senti que a cidade olhava para mim com os olhos da Dona Preciosa, que, atrás das cortinas translúcidas do rés-do-chão, sem dizer uma palavra, pedia que eu lhe fizesse companhia. Eram os olhos preciosos da saudade.
Por fim, compreendi que o Porto é como Deus, abraça-nos e perdoa os nossos pecados. Quis muito o Seu abraço, mas, como sou orgulhoso, pedi uma condição: “Deixa, ó cidade, que eu regresse a ti quando tinha dezoito anos, para reaprender a guiar nas ruas da minha infância.” Sei que isto é impossível, nem o Porto seria capaz de tamanha redenção. Ainda assim, traidor, sinto-me obrigado a dizer: desculpem-me os lisboetas, desculpem-me, desculpem-me.
*o autor escreve segundo a antiga ortografia