Saúde: um jogo de sombras que não vai acabar bem
Lamentavelmente, caminhamos a passos largos para a fragilização e, possivelmente, para a destruição do sistema de saúde, tal como hoje o conhecemos: estruturado num SNS geral, universal e tendencialmente gratuito, que agrega à sua volta a oferta privada e social. Trata-se, como é frequente ouvir-se, de uma das nossas maiores realizações coletivas, que tem proporcionado uma boa resposta às necessidades da população. Esta afirmação é demonstrada pelo elevado grau de satisfação dos nossos concidadãos e pelos indicadores internacionalmente usados para aferir o desempenho nesta área, onde, nos principais rankings, comparamos bem acima da generalidade das nossas posições nas demais realidades.
Este aparente caminho para o desastre não acontece devido ao que se está a fazer, mas, sobretudo, ao que não está a ser feito.
Ora, o que se está a fazer é, em última análise, mais do mesmo: a mesma receita e o mesmo modelo que tem vindo a ser adotado na Europa desde meados do século passado, com algumas especificidades que diferem de país para país.
Trata-se de um modelo hospitalocêntrico, orientado à prestação de cuidados agudos, que respondeu muito bem até aos princípios deste século, após o que começou a observar e a experimentar uma forte pressão que decorre da combinação entre as profundas alterações demográficas e a exigência crescente de mais e melhores cuidados.
E assim, somos chegados aos nossos dias, em que a crise está instalada, com uma degradação em crescendo do acesso e da resposta, que nem o ritmo, insustentável, do aumento de recursos financeiros alocados (os públicos quase duplicaram nos últimos 10 anos) consegue obviar.
E então o que é necessário e não está a ser feito? Passa por reformas disruptivas na organização e na gestão do sistema, nomeadamente: reorientando objetivos e paradigmas, passando da quantidade à qualidade e ao valor, empoderando - de facto - o cliente (alguns ainda preferem chamar utente ou doente), privilegiando a promoção da saúde e a prevenção da doença, e tirando todo o partido da inteligente e maciça utilização das novas tecnologias e das mais modernas ferramentas de gestão.
E porque não está a ser feito? Porque isso vai mexer com uma enorme teia de interesses instalados - legítimos na sua maioria, mas cuja manutenção, em regra, é contrária ao interesse coletivo. Porque precisa de tempo e estabilidade política na sua implementação e por isso tem de estar imune aos ciclos eleitorais e defendida, tanto quanto possível, da espuma mediática dos dias. Porque não tem havido coragem para a mudança - apenas, e de forma tímida, algumas medidas avulsas vão sendo lançadas.
E é aqui que surge a necessidade do tal pacto ou acordo de regime entre as forças políticas que acreditam e estão verdadeiramente interessadas em preservar a essência do atual modelo de saúde, reformando-o. Um pacto com um "road map" que contemple objetivos datados e quantificados. Um pacto que retire os álibis que têm vindo a ser usados por sucessivos governos para não tomarem as grandes e estruturantes medidas que, pelo menos no discurso, são amplamente consensuais.
Um pacto para acabar com este jogo de sombras que, de uma forma geral, tem sido a gestão do sistema e, em particular, do Serviço Nacional de Saúde.

