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A crise, financeira na génese e económica tal como a percepcionamos no dia-a-dia, é cada vez mais também uma crise de confiança no dia de amanhã. O que não constitui pequeno dano, se queremos encontrar caminhos para lhe escapar. Sempre que a incerteza quanto ao futuro se apossa dos povos, é no passado que se refugiam. Em gestas heróicas, reais ou imaginárias. Em memórias reconfortantes, ainda que difusas ou fragmentárias.
Nesta panela se coze o saudosismo de Oliveira Salazar que por aí volta a campear. Em certo sentido, é um efeito colateral da crise, que a germinou e alimenta. Estamos de desemprego? "A culpa é de quem autoriza fronteiras escancaradas a gente que vem roubar-nos o lugar - no tempo da outra senhora nada disto acontecia". Cresce a criminalidade e a insegurança? "É porque se tirou autoridade à autoridade, porque da liberdade se fez libertinagem, coisa que Salazar jamais toleraria".
Assim, com convenientes simplicações, se montam os mecanismos de revisão da história e de reabilitação da imagem do ditador. Nesta perspectiva, não é o Salazar "garanhão", ficcionado na TV, que suscita apreensões. É este outro filme, bem real, rodado em tempo de múltiplas perplexidades. O filme do Salazar bom, que pôs na ordem as contas públicas, manteve o país no invólucro protector do "orgulhosamente sós", assegurou ordem nas ruas e paz nas consciências. Está-se mesmo a ver o epílogo da trama, se não refreamos os ímpetos dos argumentistas: um apelo a que alguém faça sua a herança do professor de Santa Comba, para "salvar a pátria em perigo".
Refrear os ímpetos não significa proibir a expressão pública dos nacionalismos, mas derrotá-los no plano das ideias, na arena do debate político. Começando pelo mais elementar - a pedagogia dos valores democráticos, no sentido de os defender a cada momento - e seguindo para a reflexão sobre a história (a verdadeira, nunca a fundida em moldes ideológicos). Para que o tempo não volte para trás, por muito que alguns o desejem.
Nunca é de mais recordar, em especial junto das gerações nascidas já em liberdade, que o salazarismo não foi uma "democracia diferente", foi uma ditadura - pouco interessa se mais ou menos feroz do que outras, suas contemporâneas. Uma ditadura que não permitia a expressão de opiniões desalinhadas, quanto mais a concorrência entre partidos ou a liberdade sindical. Que atirava para as prisões quem ousasse questioná-la ou contra ela se batesse - muitas vítimas fez a polícia política, que perseguia sem piedade os opositores. Que falseava resultados eleitorais. Que controlava tudo o que os jornais publicavam. Que nunca soube encontrar uma solução política para a guerra colonial.