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É a dopamina da pena alheia? É uma sinapse a atear o cérebro com chamas elétricas de prazer? Não sabemos bem o que é. Sabemos só, e vagamente, que é uma enxurrada líquida neurotransmissora, e que é um sentimento potente. E sabemos, nós os adeptos fatais que sofremos pela nossa equipa de futebol como cães, e sabemos bem, o deleite que dá - apesar de sabermos que é uma coisa feia também.
Tentamos mantê-la em segredo dentro de nós, escondida do convívio comum com os outros, como se faz aos lobos lunares ou aos delírios de grandeza do Birdman, o vilão cuja consciência lhe diz sempre que ele é o maior, que é melhor e é mais do que o seu semelhante, mas nem sempre isso é possível - às vezes, o lobo salta mesmo cá para fora do nosso corpo de adeptos educados, garras no ar, olhos arreganhados, todo a babar, a rasgar-nos a capa social de cavalheiros pacientes bem-comportados. Evidentemente, só devemos mostrar esse nosso vergonhoso lado esconso aos mais íntimos, e, mesmo a esses, convém que seja sempre com acanho.
Os alemães definem essa sensação muito bem: é a schadenfreude, palavra sem correspondência na nossa língua, e nas outras línguas todas, e que é aquele misterioso prazer que muitas vezes sentimos no infortúnio dos outros - desmontada, “schaden” quer dizer dano e “freude” quer dizer alegria e prazer. Há uma expressão chula na nossa língua que também nos diz o que é a schadenfreude. Diz assim: pimenta no símbolo químico do cobre dos outros é refresco. Confessemo-nos: não raras vezes, a desgraça alheia, a equipa dos outros esmagada, goleada por todos os poros, humilhada se possível até, dá-nos mais prazer do que uma vitória nossa.
Para nós, os verdadeiros adeptos - um verdadeiro adepto é uma entidade inviolável, é feito de ferro, é como um junkie, pode trocar tudo, a pele, a carteira e a vida, mas nunca destroca de equipa -, não há nada a fazer: viver sem campeonato de futebol, isto é, sem a possibilidade de sofrer, é viver em simulação, não é verdadeiramente viver, é ressacar, é uma chatice.
É aqui que estamos, como na Lei Seca, no tédio estival do defeso, à espera da vida verdadeira, à espera que o campeonato comece. Assim, sem schadenfreude, é que não.
Será isto explicável? Será o futebol como o amor? A palavra amor, como a esculpiu Manuel António Pina, um poeta de ferro, “não precisa de ser pronunciada para significar, e (como se temesse mostrar-se) revela-se quase sempre sob a forma de outras palavras ou silêncio”. Será, então, quem sabe, como a poesia? “A poesia também não tem respostas (às vezes, pobre dela, nem perguntas), não oferece consolo, não promete coisa nenhuma”.
De ciência exata, não sabemos o que isto é. Só sabemos que pulsa, que é vida. Ora, se temos de viver, que seja como os puros adeptos, sem temor e em delírio. Assim, que chateza, que fastio, assim não. Por isso, por favor, por favor, pode o sofrimento começar de uma vez?