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Confesso que pasmei a vista assim que vi Gyökeres atuar - este cronista é sportinguista - e não podia sonhar com melhor: aos 15 minutos do primeiro jogo da 1. Liga de Futebol 2023-24 já estava a ganhar 2-0 e com uma exibição magistral. Pensei logo naturalmente que o jogo podia acabar já, era só ignorar os outros 75 minutos e ficar o restante tempo, incluindo os que ainda estavam no estádio, repimpados na poltrona do prazer, a ouvir já os merecidos comentários maravilhados, a ler já ali os jornais espantados do dia a seguir.
Mas não, o Sporting é mercurial e o futebol é um deus descontínuo, é perverso como o Sobrenatural Almeida, o fantasma de Nelson Rodrigues e do Flamengo que aparece ao adepto às horas mais impróprias a bramir prognósticos de morte, a urdir contra o resultado, ranhoso, a querer tirar-nos o direito jusnaturalista de ganhar.
Foi o que quase sucedeu: estávamos assim, hipnotizados com Gyökeres, o nosso novo animal sideral - o G é mudo, antes de se ler tem de se engolir ar e dizer só yökeres; e ele é como Skol, o felídeo, um lobo celestial capaz de devorar a lua e o sol; é como o demoníaco Draugr, a criatura viking de força sobre-humana e que tem a estranha capacidade de aumentar de tamanho e densidade conforme a sua vontade - e, embalados nesse sueco amor cortês, a um quarto de hora do fim, o Vizela em dois minutos marca dois golos e empata o jogo.
Pânico, pernas bambas, choque, pavor, lá vai o capitão Coates, um defesa primordial, fazer de ponta de lança central. E suspiramos. E asfixiamos. Mas eis que muito contingentemente, mesmo em cima do fim, aparece Paulinho, um animal que não é claro na fala, que tem pensamentos torcidos e é flexuoso, mas Paulinho parece um homem novo, ou uma cobra nova com o seu novo andar sinuoso, e marca o golo do aliviamento. O relógio marcava 90’ + 14’!
O abismo não é só para mim: este campeonato está plutónico. O Porto já ganhou aos 90’ + 11’ contra o Farense (marcou o defesa Marcano) e aos 90’ + 5’ contra o Rio Ave (Marcano marca outra vez), o Benfica perdeu o primeiro jogo com o Boavista aos 90’ + 14’, e o Braga idem, aos 90’ + 5’, contra o Famalicão.
Assim, será lícito dizer que este ano, mais do que nunca, é à alegria maligna do schadenfreude, empréstimo linguístico alemão que é o prazer e autossatisfação que sentimos nos fracassos e humilhações dos outros, que teremos todos, infames e cheios de pimenta, que nos agarrar.
A sofrer como cães, ou como dentes em erupção, o campeonato ainda agora começou e já está a arder na sua fundura ígnea, sempre pronto a explodir de dubiedades, num “mise en abyme” de sorriso aterrorizante em que tudo e o seu contrário pode acontecer em todo o lado e ao mesmo tempo.
