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Perguntaram-me no outro dia, na Feira do Livro de Lisboa, se eu ainda escrevo. A pergunta tinha a boa-intenção de uma conversa de circunstância, mas apanhou-me na fraqueza e na desconfiança de mim mesmo, como se me perguntassem “Tu ainda és quem és?” e eu não soubesse o que responder.
Ficar sem resposta quando está aí a feira, aí estão livros aos milhares - obras de quem duvidou, dos que tiveram respostas e dos que nunca as encontraram, obras de quem soube dizer que sim e de quem não soube dizer que não -, acanhar-me perante a opressão de tantos títulos talvez seja o melhor. Sou capaz de ter titubeado qualquer banalidade que serviu perfeitamente.
Mas também soube a traição. Talvez os escritores sejam a raça mais traidora, o bicho mais de abocanhar a própria cabeça. Um animal sempre por acabar cujo valor está no livro que vem, ainda que outros livros tenham existido.
Recomeçamos sempre, nem que seja um dia mais tarde. Lembro-me de como admirava o velho escritor recluso do filme “Finding Forrester” e como queria ser o miúdo que ele apadrinha. Hoje, estou mais próximo de ser o recluso, mais perto de alguém cuja nova obra alguns esperam, do que do rapaz de quem tudo se pode esperar sem que ninguém espere nada. Destes dois, um fechado no seu apartamento, o outro a jogar basquetebol nos campos do bairro, estou em pessoa nenhuma.
Um livro a ser escrito é uma coisa inteira, é uma necessidade que não espera mas que precisa de tempo, quase um lugar escondido que se arrisca a vir a público.
Dizer que ainda escrevo seria uma resposta insuficiente para isto que faço desde os nove anos, de maneira que agora a escrita se tornou uma imagem que tenho quando penso em mim mesmo, está em mim como uma característica física, tão íntima como a aparência e quase tão evidente.
Penso que estou na última tirada do próximo romance. Quer dizer que ainda tenho tempo para aquilo ficar decente. Tempo para trabalhar e tempo para desesperar. Quer dizer que - envergonhado e tímido sem causa aparente - ainda posso responder sim, escrevo. Se esta coisa inacabada durar, ainda sou quem sou.
Depois sai o novo livro e tudo recomeça, alguém volta a perguntar e eu volto a não ter resposta. Por enquanto, escondo a vida intelectual intensa a que um romance obriga. De resto, ainda faltam alguns dias de feira para olhar os livros dos outros e maravilhar-me.
o autor escreve segundo a antiga ortografia