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Encontrei Maria Barroso, pela primeira vez, há 30 anos, no arranque de uma campanha política que muito poucos acreditavam que viesse a ser coroada de sucesso: a candidatura de Mário Soares a Presidente da República (MASP).
Com a morte de Mota Pinto, em maio de 1985, Cavaco Silva conquistou a liderança do PSD e derrubou o Governo de coligação - o Bloco Central - presidido por Mário Soares. No final desse ano, os portugueses ainda se ressentiam da dureza das "políticas de austeridade" impostas pelo FMI e que o Governo de Mário Soares e Mota Pinto se viu obrigado a adotar, em 1983, para evitar a bancarrota iminente a que o Governo da AD (PSD/CDS) tinha conduzido o país. Embora os sacrifícios impostos pelas medidas de controlo financeiro aplicadas pelo Bloco Central não sejam comparáveis com a austeridade brutal infligida por Passos Coelho e a troika, persistia em Portugal um descontentamento difuso pelo agravamento das condições de vida, agravado pela incerteza sobre as consequências da adesão à Europa, prevista para o final desse ano. Cavaco Silva derrubou o Governo de coligação, explorou demagogicamente esses receios, manipulou os medos e ganhou por estreita margem as eleições legislativas de outubro de 1985, enquanto o PS sofria a maior derrota eleitoral de sempre.
Faltavam apenas três meses para as eleições presidenciais, marcadas para janeiro do ano seguinte, e a impopularidade de Mário Soares, transformado em bode expiatório de todos os males do Mundo, era ainda bem visível em cartazes e inscrições dispersas pelas ruas das cidades. As sondagens não atribuíam a Mário Soares mais de 7% das preferências dos eleitores. E foi neste contexto adverso que arrancamos com a candidatura por todo o país, conscientes do colossal esforço de esclarecimento dos eleitores que nos era exigido. Nos sítios onde se temia que a presença de Mário Soares pudesse tornar-se pretexto para confrontos violentos, era Maria Barroso quem marcava presença, com voz cristalina e silhueta frágil, serena e destemida. Em fevereiro de 1986, contra todas as expectativas, Mário Soares seria eleito Presidente da República, função que iria honrar por dez gloriosos anos.
Maria Barroso continuou fiel a si própria, sem que a sombra gigantesca do seu marido alguma vez a tivesse perturbado... No Palácio de São Bento, em Belém, na prisão ou no exílio!
Não sucumbiu à perseguição de Salazar que a proibiu de representar na Companhia de Amélia Rey Colaço e que a proibiu de ensinar até no Colégio do seu sogro! Respondeu com firmeza a todas as adversidades e continua a iluminar-nos com o seu exemplo de mulher livre e generosa.
Maria Barroso não morreu! É uma mulher demasiado forte e corajosa para nos virar as costas num momento difícil. Cumpridos os rituais desta penosa separação física, ela permanece connosco, continua a inspirar-nos a mesma "serenidade" com que enfrentou todo o percurso da sua própria vida, "sem receio nem angústia", segundo o registo de Leonor Xavier, no último capítulo da sua biografia. Maria Barroso permanece connosco. Não somos apenas os espectadores passivos desta derradeira "representação". Somos testemunhas da sua coragem tranquila e da inabalável determinação com que pisou todos os palcos a que subiu - no teatro ou na política, no exílio ou na prisão.
*PROFESSOR DE DIREITO CONSTITUCIONAL