A partir do momento em que o diploma sobre a denominada requalificação dos funcionários públicos suscitou reticências a um cuidadoso presidente da República, o seu destino estava traçado.
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Para um Governo que considera a Constituição e, sobretudo, a leitura que dela faz a maioria dos juízes do Tribunal Constitucional (TC) um obstáculo à reforma do Estado, a proposta que apresentou foi incompetente e mal fundamentada. Começa por faltar o enquadramento que lhe daria sentido, a tal reforma do Estado, anunciada ainda os partidos do poder eram oposição, e que o tempo vem confirmando se limita a alguns ajustamentos pontuais e sectoriais e a cortes, mais ou menos cegos, e despedimentos mal justificados. Se PSD e CDS não querem eternizar a guerrilha com o TC, a única forma de o "entalar" seria através de um quadro de fundo, lógico e coerente, que desse sentido estratégico às suas iniciativas. Mais não seja pelos impostos que vão pagando, quase todos já perceberam que, para o nosso nível de desenvolvimento, os custos decorrentes da actuação do Estado, tal como está configurado, são demasiados. Vai ser precisa uma cura de emagrecimento que o adeque à fase actual e uma reconfiguração que lhe dê flexibilidade para se ir ajustando às novas etapas que forem percorridas e metas que sejam alcançadas. Ora, do somatório das medidas que têm vindo a ser tomadas e/ou anunciadas, não resulta um edifício com esses atributos. Se os cortes o desarticularem e esvaírem dos mais competentes, tornando-o disfuncional e inútil, o Estado será pior: com menos custos e ainda menos benefícios.
Na ausência deste pano de fundo, cada proposta deve, por maioria de razão, ser rigorosa no seu articulado e fundamentação. Não era o caso, alertou o presidente, subsistindo ambiguidades que poderiam dar azo a arbitrariedades no processo de despedimentos. A não ser que o Governo esperasse que os juízes de turno fossem, maioritariamente, sensíveis à sua iniciativa - como só são precisos quatro, o que é ridículo, até nisso terão sido incompetentes - o diploma tinha tudo para ser chumbado. Poiares Maduro terá razão: a interpretação da Constituição deve ser contextualizada. É um tema interessante para um debate académico. No jogo político em que decidiu entrar, revelou-se demasiado ingénuo, imaturo. Comparem-se as suas declarações com as de Marcelo Rebelo de Sousa e vê-se bem a diferença. Por que é que esta gente não se aconselha, ao menos, com os seus?
A não se encontrar uma alternativa que permita a poupança prevista, a reforma do IRC arrisca-se a ser uma vítima colateral deste chumbo, o que é mau. No imediato, as medidas sugeridas em sede de IRC implicam uma perda de receitas não despicienda. Se já numa situação normal seria necessário convencer a troika de que a bondade dos efeitos a médio prazo justificava alguma derrogação dos objectivos, essa diligência complica-se muito quando misturada com incumprimentos de outras metas propostas.
Por mais voltas que se lhe dê, a nossa Constituição configura um modelo de economia e sociedade à vista do qual até os modelos ditos neoliberais parecem realistas. Não é politicamente correcto dizê-lo, mas é assim. Uma revisão constitucional que salvaguarde aquilo que são conquistas civilizacionais, mas não as confunda com a estatização da sociedade, nem tome desejos por realidades, seria um enorme avanço. O Estado tem o poder discricionário de lançar impostos, o que, em certa medida, o liberta da restrição de limitar a despesa à receita. Esse poder tem limites práticos, mais não seja o confisco. E tem, ou deve ter, um limite moral: não foi instituído para alimentar e manter uma classe imune às contingências que se abatem sobre o resto da sociedade, incluindo os funcionários públicos com contrato individual de trabalho. E nada disso tem a ver com as tais conquistas civilizacionais, bem pelo contrário.
No meio disto tudo, qual a posição do PS? Embalado no oportunismo eleitoralista, diz-nos que, quando for poder, fará o contrário do que PSD/CDS têm vindo a fazer. Como se fosse possível! Não estranha que a reputação dos políticos seja a que é.
