Naquela manhã cinzenta, Carlos levantou-se ciente de que tinha uma missão para cumprir e ninguém poderia demovê-lo. Ele, que durante anos fora um tipo pacato, sentia que chegara o momento de ser um herói.
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Beijou os filhos que ainda dormiam, encheu-se de coragem e entrou no seu Renault Megane. Pisou o acelerador com toda a força, para logo de seguida o largar, assim que se lembrou que estava na reserva. Conduziu o mais depressa que pôde, que é como quem diz a 30km/h em ponto morto, até à CEPSA de Valongo, onde se deparou com três tristes pinos e o aviso "Fora de Serviço". Sem perder tempo, porque todos os minutos contam quando o fim do Mundo está à porta, rumou à bomba seguinte, onde encontrou uma fila colossal.
Os carros multiplicavam-se, bem para lá do horizonte, numa espécie de choque em cadeia à espera de acontecer. Lá dentro, gente resignada esperava que chovesse, de preferência diesel. Nesse momento, veio à memória de Carlos o seu cunhado Gil, que um dia lhe dissera "só és derrotado quando desistes de lutar", mas não foi por isso que se lembrou dele. É que Gil tinha-lhe recomendado um site muito jeitoso, em que podia saber que postos de abastecimento ainda eram dignos desse nome. Aí ficou a saber que seria mais provável escavar e descobrir petróleo em Valongo do que ir a uma bomba e encontrar gasóleo. Confirmou que o posto do Pingo Doce da Trofa ainda tinha diesel disponível e dirigiu-se para lá, contrariado, já que era terminantemente contra gasolineiras de hipermercados.
Há circunstâncias na vida que nos obrigam a abdicar dos nossos princípios por um bem maior... E por falar em maior... a fila na Trofa era ainda maior que a de Valongo. Parecia que Portugal estava novamente apostado em entrar para o Guinness. Se um pão com chouriço gigante conseguiu, porque não o maior ajuntamento de carros de sempre? Resignado, perfilou o seu Megane no último lugar da bicha... Estava tão abatido, que nem lhe passou pela cabeça o habitual trocadilho sobre "bichas". As horas foram passando e já ia num confortável 79.º lugar (contas por alto), quando ouviu na rádio que uma bomba em Santo Tirso seria reabastecida muito em breve. Abandonou a fila sem pensar duas vezes. E nem o apito estridente do automóvel, lembrando-lhe que estava na reserva, o fez hesitar. Deu, pela primeira vez, uso ao terço que tinha pendurado no retrovisor, e rezou durante o caminho, para que o carro não parasse. Era a sobrevivência da sua família que estava em causa. OK, talvez não fosse uma questão de vida ou morte. Mas a ida a Anadia para passar a Páscoa com aqueles primos muito chatos podia ser posta em causa. E depois, com quem iam embirrar?
Por falar nisso, uma embirrenta senhora resolveu fazer birra só porque Carlos se atravessou à sua frente, entrando fora de mão na Galp de Santo Tirso, ultrapassando assim cerca de 49 viaturas. Nem era muito o género dele, mas situações extremas exigem medidas extremas, já se sabe. E o gerente da bomba pelos vistos também sabia disso, já que, extremamente irritado, o mandou para o fim da fila. Foram 7 longas horas, as que passou dentro do carro, e quase tão entediantes como as que costumava passar no emprego. Até que o grande momento chegou! Até ouviu harpas celestiais (ou então era Beyoncé, que estava a dar nas colunas da bomba, Carlos já não sabe precisar, estava nervoso). As mãos tremiam-lhe. E mais tremeram quando percebeu que já só havia Evologic. Mas lá perdeu o amor ao dinheiro e atestou. Depois, abriu o porta-bagagens, tirou de lá os 12 jerricãs que comprara na véspera e encheu-os um por um, deixando os restantes condutores exasperados. Uns invejosos, que não sabem esperar pela sua vez.
Conduziu eufórico até casa, esperando ser vitoriado pelos seus. Estranhou o silêncio ao entrar. Não estava ninguém. Aparentemente tinham seguido as suas vidas, a pé, indiferentes à falta de combustível. Ligou a televisão e viu que o sindicato dos motoristas de matérias perigosas tinha posto fim à greve, logo agora que ele se juntara à classe, transportando 120 litros de matéria perigosa na bagageira. Tocou o telefone. Era a prima Gracinda, a cancelar o almoço de Páscoa. Contou que resolveram comprar um carro elétrico e agora queriam cortar gastos supérfluos, como aquele folar que ninguém come.
*Humorista