Nas empresas privadas, os accionistas, mesmo os mais pequenos, têm sempre a possibilidade de expressar a sua opinião por ocasião da respectiva Assembleia- -Geral (AG). Tal oportunidade está-nos vedada no caso das empresas estatais. Digo "está-nos" porque, como é bom de ver, somos nós os cidadãos quem, em última instância, são os accionistas dessas empresas. Quem, circunstancialmente, governa fica, de algum modo, com a legitimidade e a responsabilidade de representar esses interesses. Quando, como em qualquer empresa, a AG elege uma administração, a mesma terá a confiança do Governo para prosseguir o entendimento que este tenha das preferências dos accionistas. Nos últimos anos tem havido uma evolução, ainda que limitada e apenas nas empresas sujeitas a um maior escrutínio público, no sentido de pôr o critério da competência profissional dos administradores escolhidos à frente do da cor partidária. Alguns dos casos de maior sucesso que conheço coincidem com empresas em que se verificou essa e uma outra condição: a administração manteve-se mesmo quando mudou o partido maioritário. Foi assim na APDL. Foi assim na RTP.
Corpo do artigo
A própria natureza das empresas públicas cria espaço para tensões, contradições e interrogações. Se exceptuarmos as visões estatizantes dogmáticas, uma empresa pública só tem justificação se essa for a melhor maneira de garantir a prossecução do interesse público. Esta formulação deixa, desde logo, em aberto uma multiplicidade de questões que vão desde a definição do que é interesse público, até à possibilidade de este poder ser prosseguido por entidades privadas, passando pela própria evolução (por exemplo, tecnológica e de âmbito de mercado) que a provisão de bens e serviços públicos experimentou ou pode experimentar. Na ausência de um consenso ou de um entendimento, interpartidário e social, alargado sobre a missão da empresa, é natural que cada governo procure usá-la como instrumento da sua política económica ou, meramente, como fornecedora de emprego para os seus boys. Por isso, a simples estabilidade e competência da gestão não é condição suficiente. Os ziguezagues na respectiva orientação, às vezes na sequência de meras mudanças de ministros no mesmo governo, contribuíram para a ineficiência de muitas empresas públicas, fornecendo o meio ambiente adequado para que proliferem e medrem os interesses corporativos, o que, por sua vez, contribui para reforçar a ineficiência. Por todo este conjunto de razões, as empresas públicas são uma instância propícia a conflitos, não sendo fácil atrair para elas gestores profissionais. A coisa complica-se ainda mais quando, cedendo à demagogia, se estabelecem limites remuneratórios desfasados da realidade das empresas privadas, limitando a capacidade de recrutamento de profissionais qualificados.
Não admira, por isso, que as empresas públicas acumulem uma dívida substancial. Ia a escrever, "sejam responsáveis" mas, na realidade, elas são mais "vítimas". Vítimas da instrumentalização política de vários quadrantes e da incapacidade de sucessivos governos para estabelecer uma estratégia coerente e os incentivos apropriados. Poderia ser de outra maneira? Talvez, mas, diria o cínico, não seria a mesma coisa. Não estranha, por isso, que a sua privatização venha ganhando adeptos. E, no entanto, como revelam os casos que citei e outros que poderia referir, não tinha de ser assim. Mas, como demonstra o caso RTP, mesmo governos ditos liberais, quando chega a altura cedem à tentação dos interesses, do uso e abuso. Quando se confrontam com gestores com espinha dorsal, como no caso da RTP, têm a resposta que merecem: a denúncia de que a opção não prossegue o interesse público. Gestores destes são incómodos. Por serem independentes e capazes. Com eles corre-se o risco de se desdizer que empresas públicas são sinónimo de ineficiência. Um aborrecimento quando a ideologia nos diz o contrário. O melhor, nestes casos, é desenhar uma táctica para correr com eles e ficarmos com o caminho aberto. Pobres empresas públicas, vítimas de amigos e inimigos. Sem salvação!
O autor escreve segundo a antiga ortografia