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A arquitetura constitucional da II República adaptou-se muito bem às mudanças políticas introduzidas por esta legislatura. O XXI Governo Constitucional vai completar dois anos no dia 26 de novembro. Foi a primeira vez que se experimentou uma solução governativa concertada pela Esquerda parlamentar desde as remotas atribulações do processo de transição democrática aberto pela revolução libertadora do 25 de Abril de 1974 que ficou para a história como o processo revolucionário em curso ou, abreviadamente, o PREC. Os partidos da coligação minoritária da Direita - PàF - remetidos à Oposição em consequência da rejeição do seu programa de Governo, iriam precisar de dois anos para se resignarem à normalidade instituída pela aliança parlamentar firmada pelo Partido Socialista com o Bloco de Esquerda, com o Partido Comunista Português e com o Partido Ecologista "Os Verdes". Fosse por preconceito atávico, mera teimosia ou calculado oportunismo, a Direita sustentou longo tempo a tese da ilegitimidade do novo Governo, alimentando a expectativa de que algum desaire financeiro ou uma solene reprimenda de Bruxelas viessem emprestar alguma verosimilhança aos seus falsos alarmes da catástrofe iminente que, enfim, lhe franqueasse o caminho do regresso ao poder e à continuidade das suas políticas.
Marcelo Rebelo de Sousa iria ser eleito presidente da República à primeira volta, no dia 24 de janeiro de 2016. Tomaria posse do cargo sete semanas mais tarde, a 9 de março, perante um Parlamento onde os partidos de Esquerda constituem a base de apoio maioritária de um Governo minoritário do Partido Socialista, recém-nomeado, a contragosto, pelo presidente cessante, Aníbal Cavaco Silva. O antecessor, recorde-se, fez questão de explicitar previamente a sua relutância em aceitar a solução proposta, apesar do fracasso da sua primeira escolha e da ausência de alternativas constitucionais que respeitassem as preferências manifestadas pelos eleitores nas legislativas de 4 de outubro: com efeito, o presidente não pode convocar novas eleições legislativas nos seis meses consecutivos à eleição dos deputados para a Assembleia da República, nem o pode fazer nos últimos seis meses do seu próprio mandato. A Direita inconformada alimentou durante algum tempo a esperança de que o novo presidente fizesse aquilo que o velho estava constitucionalmente impedido de fazer. Marcelo Rebelo de Sousa, porém, cedo tornou claro o seu compromisso com a estabilidade política e o seu respeito pela vontade popular.
Ao longo destes dois anos, o Parlamento reforçou a sua importância e proporcionou alargada visibilidade às pressões e aos interesses contrapostos que se digladiam no palco legislativo ou que o tomam como alvo. É a exibição dessa conflitualidade, a tensão perpétua entre poder e contrapoder, que justificam o lugar central que lhe confere o regime parlamentarista. Contudo, o mais inesperado contributo para a afirmação das virtudes do nosso original semipresidencialismo viria do próprio presidente. Em nenhum momento Marcelo Rebelo de Sousa extrapolou do quadro estreito das suas atribuições constitucionais. Há quem deplore a sua imaginação e bonomia, mas a presença calorosa, o comentário fácil, a flagrante espontaneidade, permitiram que nos momentos mais trágicos e dolorosos os cidadãos pudessem sentir a proximidade dos responsáveis políticos e a solidariedade de um Estado frio e distante. É verdade que os agentes de uma certa Comunicação Social maliciosa e mal informada sistematicamente convertem em instruções e advertências ao Governo qualquer comentário de Marcelo, por mais inocente. É certo que nunca se preocupou em desmenti-los, preferindo desfrutar dessa aura imaginária. Mas foi assim que reinventou a interpretação tradicional da sua função moderadora, prestando um valioso contributo à estabilidade governativa e à credibilização do sistema político.
* DEPUTADO E PROFESSOR DE DIREITO CONSTITUCIONAL