As questões de constitucionalidade levantadas em torno do Orçamento do Estado para 2013 são um prenúncio de mudanças no paradigma político democrático que podem ser perigosas se não forem devidamente analisadas à luz dos valores do Estado de Direito.
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Dir-se-ia que, quando se recorre ao tribunal com competência para apreciar a conformidade das leis com as regras e princípios ínsitos na Constituição da República, se está a exercer um direito e, como tal, é o próprio sistema constitucional que está a funcionar. Mas, quando são as próprias forças políticas minoritárias, politicamente derrotadas na Assembleia da República pela maioria política, a apelar ao Tribunal Constitucional para que anule, pelo menos parcialmente, certas opções políticas dessa maioria, então estamos a resvalar para um domínio em que o político e o judicial se misturam perigosamente.
Sejamos claros: o Tribunal Constitucional não pode ser transformado numa segunda câmara do Parlamento, numa espécie de senado com direito de veto sobre as deliberações da AR que desagradem à Oposição minoritária. Por muito politicamente erradas que sejam as deliberações em causa, elas constituem opções políticas legítimas de um órgão político legítimo que, enquanto tais, não devem ser escrutinadas por um tribunal, por muito "jurídicos" que sejam os fundamentos políticos aduzidos para justificar esse escrutínio.
Por mim, entendo que o nosso sistema político já tem, apesar de todas as degenerescências, maturidade democrática suficiente para suportar a introdução de uma segunda câmara parlamentar, uma espécie de senado, com constituição e ciclo político diferentes dos da atual AR. Mas, pretender-se que o TC possa metamorfosear-se nessa segunda câmara do Parlamento ou chamá-lo a desempenhar idênticas funções com o seu atual regime e enquadramento constitucionais, é muito perigoso para o regime democrático e para o próprio tribunal em si mesmo. Primeiro, porque, em tal caso, os seus membros passariam a ser escolhidos mais "cuidadosamente" - passariam a ser escolhidos mais pela sua capacidade política do que pela sua competência jurídica. Ou melhor: os juízes passariam a ser designados mais pela fidelidade partidária do que por outras qualidades, o que rapidamente transformaria o tribunal num órgão estritamente político, funcionalmente aviltado e inútil como tribunal.
Mas, por outro lado, conduziria também a um exacerbar das pulsões para a judicialização da vida política com todos os perigos que isso acarretaria para a própria democracia. Nem a instância política deve influir no funcionamento dos tribunais, nem os tribunais devem condicionar o livre jogo político dos órgãos políticos do Estado, nomeadamente da Assembleia da República. Devemos, com a mesma firmeza, recusar quer a politização da administração da justiça quer a judicialização da vida política.
O Tribunal Constitucional teve e tem um papel relevantíssimo no plano da fiscalização concreta da conformidade das leis com a Constituição da República, obrigando os tribunais portugueses, incluindo o Supremo Tribunal de Justiça, a respeitar e a aplicar a CRP nas suas decisões. O TC teve e tem um papel único na criação de uma cultura constitucional nos órgãos de poder, incluindo, naturalmente, nos tribunais e na própria sociedade. A CRP é hoje mais conhecida e mais respeitada, devido, sobretudo, à ação meritória e altamente pedagógica do TC.
Mas coisa bem diferente é chamar o TC a participar ativamente no processo de luta política, mesmo que para, alegadamente, corrigir os seus excessos. A decisão do TC sobre corte dos subsídios de férias e de Natal previsto no Orçamente para 2012 foi uma decisão política que os juízes do tribunal tentaram fundamentar com uma urgente argumentação jurídica. O resultado está à vista: agora, além do presidente da República, já toda a Oposição política recorre para o TC. E, no futuro, ainda vai ser pior.
O TC é útil ao Estado de Direito e à democracia enquanto mantiver a humildade própria de um tribunal. Se se deixar inebriar pela vã glória das decisões políticas, deixará de ter sentido e utilidade como tribunal.