Os portugueses são atreitos a um tratamento reverencial a algumas personalidades - sempre estrangeiras e sempre portadoras de um perfil entre o carrancudo e o quero posso e mando. Ao tratar Cavaco Silva por senhor Silva, José Sócrates por senhor Sousa ou Vítor Gaspar por senhor Louçã Gaspar, Alberto João Jardim constituiu-se numa exceção e os seus sons são interpretados com caráter crítico. No mais, ninguém chama a uma conversa o presidente da República tratando-o por senhor Cavaco, ou identifica os líderes partidários por senhor Passos, senhor Seguro, senhor Jerónimo, senhor Portas ou senhor e senhora Semedo e Catarina - um dueto é sempre mais complexo e original.
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Já é paradoxal mas também sintomático de um certo respeitinho usar o "senhor" ou a "senhora" para figuras de outras paragens e às quais há uma auréola a atrair a uma certa vassalagem.
O futebol e a política são paradigmáticos dessa dualidade.
No mundo da bola na condução de uma análise ou de uma entrevista ninguém se refere ao senhor Mourinho ou ao senhor Villas-Boas; já agora, ao senhor Vercauteren ou ao senhor Guardiola. Há um sir, o Alex Ferguson, mas é isso mesmo: sir. No campo mais extremo os restantes são normalmente misteres e ponto final. Já o ar toureiro levou ao registo do senhor Camacho quando esteve no Benfica e a fama de sargentão alimentou durante uma série de anos o respeitinho pelo senhor Scolari na Seleção Nacional.
Ao nível dos decisores da nossa vida coletiva passa-se o mesmo. Não é frequente um diálogo girar em torno do senhor Barroso, do senhor Obama ou do senhor Cameron; mas tudo muda de figura sempre e quando o foco da conversa se centra na chanceler da Alemanha - e na esmagadora maioria das vezes, em entrevistas ou debates entre o ponderado e o colérico, é sempre mencionada "a senhora Merkel".
Embora possa ser considerado subliminar, um tratamento assim acaba, no fundo, por ser antagónico ao do estado de espírito da maioria dos seus utilizadores.
O caso de Angela Merkel é paradigmático.
Candidata a tomar conta da Europa substituindo a legitimidade democrática de um qualquer processo vindouro pelo oportunismo da opressão económico-financeira de estados alvos de desgovernação própria durante décadas, a chanceler da Alemanha é quase sempre tratada por senhora Merkel. Senhora Merkel para aqui; senhora Merkel para ali. E o tom é transversal aos indefetíveis e aos mais virulentos dos seus críticos.
Há, enfim, uma contradição não resolvida e cujo exemplo mais próximo se passa no interior das nossas fronteiras.
Angela Merkel vai estar hoje por cá cinco horas e pouco, entre cumprimentos, salamaleques e encontros para a fotografia de legitimação de políticas de um país em processo de resgate. Um quadro assim justifica tamanha chinfrineira, manifestações ululantes, subscrição de petições anti?
Sinceramente: ao não se confrontar com uma couraça de indiferença nesta viagem relâmpago, reconhece-se a Merkel, perdão, à senhora Merkel, um poder de decisão muito para lá do real. Contestá-la de modo desabrido é prestar um serviço ao Governo nacional. Afinal, Passos Coelho e os seus ajudantes saem do foco das críticas e passam as culpas próprias para a alemã.