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MEC: “Eis um bom exercício literário: descrever a chuva. Descreva a chuva que está a chover agora, de maneira a ser inconfundível com qualquer outra chuva que tenha chovido. Descreva-a como se estivesse ao telefone com Spielberg e ele quisesse recriar exactamente esta chuva no último filme da carreira dele, chamado ‘September Rain’. Todas as máquinas avariaram. Mas Spielberg precisa de saber os pormenores físicos desta chuva, mas também os metafísicos: qual é o espírito dela, o que é que ela faz sentir? E paga-lhe um bilião de dólares, se conseguir.” (“Público” de ontem.)
ARC: Stevie, esta chuva não é tua nem minha, e não é igual à chuva daquela ocasião, há muitos milhões de anos, em que choveu durante milénios. Aposto que te lembras dos brontossauros, longuíssimos de pescoço e ainda mais longos de guarda-chuva. Nesses milénios não estavas bêbado, quer dizer, um pouco mais sóbrio do que durante o jantar de ontem. Um bilião por chuva, Stevie? Espera lá, que eu cobro. Ouves lá fora? Espera, deixa-me sair. E agora? Começou distante, atrás da cordilheira: aí vinha a açoitar a encosta, a mascará-la de onda de terra. Depois as nuvens desceram em jeito de evento bíblico. E eu sem arca, ainda atrapalhado com a burocracia: no Mesozóico os brontossauros sabiam usar guarda-chuva; no Antropoceno os animais nem sabem fazer o check-in. E ela chegando, e ela vindo. Primeiro não se ouvia. Mas ouve lá agora. Parece que a Terra inteira está envolva no mesmo barulho de chuva, e que nem eu nem tu sairemos alguma vez debaixo dela. Claro que barulho de chuva não é barulho. É um som quase de mamífero. Tantos e incontáveis, estes pequenos cânticos de boca fechada. E agora nada se vê além da chuva. Stevie, desconfio que isto não tem fim. Se estivesses aqui amedrontavas-te. Eu não. Quero ir com a água, escorrer daqui para fora. Descrevo-ta - e a seguir vou nela. Mas não tenho estômago para afogado. Quero ser bebido por esta água. Depois de mijado, espero mil anos até subir às nuvens. Como não posso, contento-me em palavrear a chuva, e tu indemnizas-me com os teus muitos milhões. Agora até aumentou. Há mais chuva do que palavras para a descrever. O telhado deixa cair as torrentes, a casa chove-se do telhado à rua. De certeza que já ouves bem. O quê? “Wait”. Só agora dizes que não percebes patavina de português? “Fuck, sorry... Let me summarize it: Stevie, for God’s sake, it’s raining cats and dogs!”
O autor escreve segundo a antiga ortografia