Sete anos de pastor Jacob servia...
Sete anos de pastor Jacob servia / Labão, pai de Raquel, serrana bela; / Mas não servia ao pai, servia a ela, / E a ela só por prémio pretendia. (Luís Vaz de Camões, Sonetos). Nem a lírica camoniana nos ajuda a entender que motivos ou afetos poderiam conduzir um presidente de Câmara que serviu durante 12 anos a população de Freixo de Espada à Cinta, a encetar novo ciclo presidencial no município de Vila do Bispo.
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Não parece provável que alguma vez tenha ocorrido a Mesquita Machado a possibilidade de trocar a Câmara de Braga pela de Guimarães. Ou ainda, no quadro da lei vigente, que três eleições consecutivas para três autarquias diferentes prejudicassem a apresentação de uma nova candidatura a qualquer município. Ou até, que três mandatos consecutivos numa Câmara pudessem vedar a candidatura à presidência de uma junta de freguesia da área desse ou de outro município... E vice-versa! É para este tipo de charadas que nos lança a confusão estabelecida entre os "mandatos consecutivos," previstos na Lei n.º 46 /2005 de 29 de agosto, e a mera sequência temporal de mandatos diversos, legalmente irrelevante. O deputado do PCP, António Filipe, esclareceu luminosamente o conceito de "mandato" e a sua titularidade, na intervenção que fez na Assembleia da República, que subscrevo. Apesar de tudo, faria mais sentido proibir que o presidente de Câmara - que está impedido por lei de se candidatar simultaneamente a mais que uma autarquia - pudesse candidatar-se a qualquer outra nas eleições seguintes, porque o faria, necessariamente, antes da conclusão do mandato anterior, mas disto não cuidou a lei.
A racionalidade da conceptualização constitucional das autarquias locais como "pessoas coletivas territoriais" (art. 235.º da CRP) é contrária a uma interpretação dos limites legalmente previstos de acumulação de mandatos sucessivos que ignore a ligação indissolúvel que por elas se estabelece entre o espaço físico e a comunidade que o habita. São os laços de vizinhança e proximidade que permitem a identificação dos "interesses próprios das populações respetivas" e que justificam o autogoverno dessa população. O presidente "de" Câmara ou "de" Junta é um instrumento de governo próprio da comunidade que o "mandatou". Parece que os elementos clássicos da hermenêutica jurídica - históricos, lógico-sistemáticos e gramaticais - apontam de forma coerente para a conclusão de que se a lei pretendesse visar uma tipologia de funções em abstrato, como entendem alguns, teria de o explicitar e fundamentar em termos claros e inequívocos, o que não se afigura fácil nem razoável. Invoca-se ainda, a este propósito, que a globalização económica aboliu a dimensão territorial. Porém, foram precisamente os "caciques locais" a motivação histórica autêntica para esta intervenção legislativa. E se a corrupção e a prepotência perdem relevância ao nível do poder local não seria então mais relevante impedir que um presidente de Câmara, ao cabo de três mandatos sucessivos, pudesse ser nomeado, por exemplo, secretário de Estado da Administração Local? Acrescente-se, ainda, que esta lei restringe um direito de participação política que a Constituição protege como direito fundamental, o que definitivamente exclui a interpretação extensiva ou analógica do preceito em questão.
Mas não podia passar sem reparo o lado cínico e oportunista desta lei. Porque a imposição de "limites à renovação sucessiva de mandatos" assume o fingimento de que o "princípio da renovação democrática" apenas diz respeito aos cargos executivos do poder local. De facto, não se vê nenhuma razão para que a proibição da acumulação de mandatos sucessivos se restrinja aos cargos executivos, como prevê atualmente o texto constitucional. Bem pelo contrário, seria bem oportuno ponderar o alargamento futuro do "princípio da renovação democrática" não só aos governantes mas também aos deputados da República que podem ocupar vitaliciamente essas funções, por mera decisão interna das direções partidárias, sem que os eleitores tenham alguma oportunidade de se pronunciar ou de saber, sequer, quem elegem!