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O que haverá de comum nesse albergue espanhol onde se cruzam realizadores de cinema, músicos, arquitetos e o atual presidente dos Estados Unidos da América? A fama, o poder e as acusações de assédio sexual! Tais acusações, largamente publicitadas mas sem definitiva condenação judicial, não foram cabalmente desmentidas pelos visados e até deram azo, frequentemente, a vagos pedidos de desculpas. Além disso, provocaram espetaculares demonstrações de indignação, primeiro nos Estados Unidos e depois na Europa. Embora a gravidade das acusações seja, aparentemente, muito variável - desde o irrisório ou anedótico até à chantagem mais flagrante - trata-se claramente de um assunto sério que merece aturada reflexão. Invariavelmente, o abuso sexual surge associado ao exercício do poder - económico, académico, público ou privado - e ainda que o escândalo tenha rebentado aí, o abuso não se inscreve, em exclusivo, na diferença de género.
Nos Estados Unidos, uma artista de filmes pornográficos que teria recebido 130 mil dólares de Donald Trump para se calar, por força de um acordo extrajudicial, mudou de ideias e decidiu denunciar o comportamento "inadequado" do agora presidente, alegando que ele nunca assinou o tal acordo e declarando-se disposta a devolver a "indemnização" que diz ter recebido. Entretanto, o número de artistas porno assassinadas continua a crescer. Entretanto, em Madrid, cinco milhões de mulheres saíram à rua em manifestação para, designadamente, denunciar a discriminação salarial de que são objeto, relativamente aos homens que desempenham idênticas funções. Celebrando o Dia da Mulher, o Conselho de Ministros, em Lisboa, aprovou no dia 8 de março um conjunto de medidas para combater a sub-representação das mulheres em cargos de direção e, na passada terça-feira, realizou-se ao fim da tarde uma tertúlia, na Assembleia da República, para debater as dificuldades de conciliação entre a atividade profissional, a vida familiar e pessoal.
A discriminação das mulheres na sociedade patriarcal globalizada do nosso tempo oferece um ângulo de observação privilegiado dos condicionalismos culturais que perpetuam modos ancestrais de exploração e de opressão. Por exemplo, assim nos questionava Maria do Céu da Cunha Rego na tertúlia realizada na Assembleia da República, o que poderá justificar, atualmente, a distribuição assimétrica dos deveres de cuidado face à diferença de género, para além das determinações biológicas da gravidez e do aleitamento? Então, porque não é atribuída por igual, a cada um dos cônjuges, a licença de maternidade e de paternidade? Se o papel da mãe e do pai na educação dos filhos reveste igual importância, porque é a mulher a mais penalizada na "conciliação" de tais deveres com as relações de trabalho? A persistência desses estereótipos não prejudicou o envolvimento dos homens nas atividades económicas emergentes da revolução industrial do século XVIII, mas condenou a maior parte das mulheres, ao longo de inumeráveis gerações, a uma atividade não remunerada, desprezada pela economia, ignorada pelas finanças públicas, socialmente desqualificada, que as rotulou como "domésticas".
Nenhum determinismo natural reserva para as mulheres o exclusivo de cuidar... quer se trate de menores, de idosos ou qualquer outra condição incapacitante. Nenhuma evidência científica ou inquérito social demonstra que os homens tenham nascido para "predadores" e as mulheres para cuidar deles. Confortado por esta conveniente discriminação, o mundo masculino que dita a política internacional desencadeia guerras, arrasa cidades, mata e abandona aqueles que desgraçou.
* DEPUTADO E PROFESSOR DE DIREITO CONSTITUCIONAL