"Não sou fã de hambúrgueres, e acho que em Portugal são desnecessários. Como, aliás, as várias cozinhas estrangeiras." Quem o diz é José António Saraiva. Como se tudo aquilo que não apreciamos devesse ser erradicado.
Corpo do artigo
Por mim, iam à vida o porco agridoce e estas crónicas no jornal Sol! O arquiteto Saraiva apresenta o mesmo tipo de raciocínio de um taxista aposentado que é levado pelos netos a um restaurante japonês e reclama por não haver pão com manteiga. Mais que o conteúdo, fascina-me a forma como Saraiva escreve. "Portugal tem uma culinária tão rica e variada - em carnes, peixes, mariscos, cozidos, grelhados, guisados, assados, estufados, legumes frescos e saladas cruas - que as cozinhas importadas não fazem falta nenhuma".
Isto parece um exercício de português da 3.ª classe: "enumere vários tipos de alimentos e modos de confeção". E o arquiteto passou com distinção! A redação da primária continua: " Mas também não sou fundamentalista. E por isso, quando dá jeito, como um hambúrguer. Ou vou a um restaurante italiano". Serve esta descrição exaustiva daquilo que come ou deixa de comer para justificar a sua presença numa "casa de hambúrgueres", que se transformou numa autêntica casa de horrores, aos seus olhos. Em vez de zombies e vampiros, o estabelecimento encheu-se de figuras ainda mais assustadoras: festivaleiros. "Ao meu lado estava um jovem casal, de cerca de 20 anos, ambos andrajosamente vestidos. Ele com um boné enfiado na cabeça, uma barba descuidada, uma t-shirt e uns calções que pareciam apanhados no lixo e umas sapatilhas gastas. Ela demasiado gorda para a sua idade, com uma roupa justa e sem graça que lhe ficava pessimamente", diz Saraiva. É assustador que um homem que foi em tempos diretor do "Expresso" faça observações dignas do Polícia da Moda da CMTV. Parece que estamos a ler a crónica de um alien, acabado de aterrar na Terra. Saraiva espanta-se com o facto de haver festivais de música durante o dia (tudo leva a crer que se tratava da Comic Con, por isso a roupa andrajosa talvez fosse um disfarce de Darth Vader), e lamenta que não seja como antigamente, quando a música no verão se resumia a cantores pimba nas aldeias, em concertos destinados ao "povinho" (palavras dele, nunca me lembraria de usar um diminutivo para o povo, a não ser quando me refiro ao apelido do Zé). Mas os tempos são outros e, segundo nos conta Saraiva, nos festivais para "malta urbana" só se vê gente "sem aprumo" e que lá vai para se excitar. Recorre também ao clássico "aquilo nem é bem música, é ruído", uma crítica terna, digna de qualquer bom avô. O pior é o que vem depois, já mais próprio de um avô que não toma a medicação: "tenho dificuldade em imaginar como será o Mundo amanhã.
Não vejo que com aquela gente se faça alguma coisa de jeito. Gente que só quer pão e circo: comer, beber e excitar-se com doses bombásticas de música ao vivo. E, claro, olhar para o telemóvel. E às vezes snifar e aspirar umas "linhas". Sem esquecer o sexo quando não há mais nada para fazer". Não sei o que é mais absurdo: se fazer uma previsão apocalíptica através da reduzida amostra de fãs da Comic Con que apreciam cheeseburgers, se achar que o sexo é uma atividade reservada para quando não há nada melhor para fazer. Mas voltemos ao casal maltrapilho que estava na fila... Saraiva ficou chocado com a falta de comunicação entre os dois: "Ele não tirou os olhos do telemóvel, com a atenção permanentemente concentrada no ecrã, como se lá acontecessem coisas extraordinárias". Provavelmente estava a ler uma crónica do arquiteto! Como aquela em que era relatada mais uma traumática experiência social, dessa vez com um rapaz gay no elevador da Fnac do Chiado. Convenhamos que, para quem não gosta de privar com juventude, e vê nela todos os males do Mundo, o arquiteto Saraiva enfia-se demasiadas vezes na boca do lobo. Mas fiquei feliz por saber que tem a seu lado uma alma gémea. "A minha mulher desabafou: "Estou desejosa que o verão acabe, para acabarem os incêndios e os festivais!". E estava cheia de razão". Pois estava. São flagelos da mesma dimensão. Aliás, o grande problema é que Portugal, neste momento, é o país dos 3 Fs - festivais, fogos e fondue, outro prato que veio de fora e não faz cá falta nenhuma.
* Humorista