Corpo do artigo
É o título de uma crónica genial que começa assim: "lembro-me como se fosse há oito bilhões de anos"... Lembra uma nostalgia imensa, longa longa, de um velho velho que quanto menos pode mais quer. Mas não é: fala de "uma célula recém-chegada do fundo do miasma" que vê outra e se encanta - e quer ser, ele e ela, uma única célula. Nunca ninguém escreveu o sexo assim, entre membranas básicas e daí em diante (crocodilo, elefante, borboleta, sei lá que mais, símios e felinos), até às complicações dos cérebros evoluídos. Complicações e outras seduções, decerto a leste do Paraíso.
Quem a escreveu foi Luis Fernando Verissimo, o génio que morreu na semana passada. Não há humor igual deste lado do Atlântico. Enquanto ele escrevia sobre o sexo na cabeça em 1980, nós ainda estávamos noutros suspiros, sem descobrir que as frases, se são todas sérias, não têm seriedade nenhuma. Ainda nos dava gozo sermos chatos, cheios de com licenças e se faz favores descomovidos. Tanto respeito pela língua chega a ser desrespeitoso. Tanto temor, digo eu a mim mesmo, pode ser tara.
E depois a síntese desse génio, o quotidiano que nunca é só das nove às cinco nem casa trabalho casa, que é antes fazer do corriqueiro universal - e só as idiossincrasias de quem escreve podem ser de um sendo de todos. Tudo o que ele tinha era dele, logo de todos.
Li Luis Fernando Ver!ssimo pela primeira vez num voo São Paulo Rio e afligi-me. Aquela escrita era tão de cortar o fôlego que eu achei que havia problema com o avião. Aterrei incólume, quer dizer, incólume mais ou menos: um pouco ferido no orgulho-próprio (havia quem escrevesse assim, eu não), mas também num entusiasmo brasileiro de fazer o que quisesse da escrita, como aquela língua estrangeira que ele me mostrava e que afinal era minha.
Fui logo escrever uma crónica que era uma carta de amor de um neandertal prestes a extinguir-se mas fascinado com a beleza de uma sapiens. É que uns tempos antes li que quase todos os ocidentais têm dois por cento de neandertal no ADN: em tempos, os neandertais amaram os Homo sapiens. E talvez estes, mais evoluídos, refinados e civilizados, os tivessem amado também, apesar de tudo. Mas é assim: o amor salva, pelo menos em dois por cento.
Depois lembrei-me dos tamboris fascinados com as tamborilas e aqui descrevi como estes as mordem no dorso. Um pouco dessa mordidela é do Ver!ssimo, pelo menos a ideia de pôr o peixe macho em busca do anzol da fêmea. E assim os descrever, anzolados, sem complexos de escrever bonito ou importante.