Em maio deste ano, um tribunal alemão de Colónia qualificou a circuncisão de um rapaz que sofreu graves hemorragias em consequência da cirurgia a que foi submetido, não consentida por ele nem prescrita por razões médicas, como sendo um atentado contra a sua integridade física. Contudo, a reação dos grupos religiosos não se fez esperar, denunciando a sentença como uma ameaça à liberdade religiosa, e o Governo alemão, perante os veementes protestos que os chefes das comunidades judaicas e muçulmanas de imediato fizeram ouvir, prontamente assumiu que iria esclarecer e regular o assunto e em outubro apresentou um projeto legislativo.
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O "Conselho de Ética" alemão, por unanimidade, iria pronunciar-se favoravelmente ao reconhecimento legal da circuncisão, mas recomendou a adoção de requisitos mínimos, contemplando a informação adequada sobre o ato, a necessidade de anestesia e a observação de procedimentos cirúrgicos profissionais. Por seu turno, a associação alemã de pediatras e várias organizações de defesa dos direitos das crianças manifestaram a sua oposição à legalização desta prática sem o consentimento informado da criança, argumentando que os danos provocados implicam consequências irreversíveis.
Por fim, esta semana, a câmara baixa do parlamento alemão - o Bundestag - aprovou com o apoio dos dois partidos da maioria e do principal partido da oposição uma lei que visa pôr termo às dúvidas suscitadas quanto à admissibilidade da circuncisão de recém-nascidos e crianças, onde se determina que a cirurgia deve ser realizada por um agente habilitado e que fica dependente do consentimento dos pais. Ficou assim prejudicada uma proposta de lei alternativa que proibia a circuncisão dos jovens com menos de 14 anos e, a partir dessa idade, requeria o consentimento informado do menor.
A chefe do Governo, Angela Merkel, congratulou-se com a aprovação da nova lei, afirmando que a saúde das crianças ficou salvaguardada sem sacrifício da liberdade religiosa. A lei mereceu amplo acolhimento e foi generalizadamente reconhecida como uma solução razoável e pragmática. Embora se tenham travado desta forma os excessos dos que reclamavam que a circuncisão fosse criminalizada - o que seria perigoso e contraproducente - a verdade é que se entregou à teologia a responsabilidade pela decisão sobre a questão de fundo: este conflito opõe a liberdade religiosa apenas ao direito a cuidados de saúde ou estará em causa o direito fundamental à integridade física? Pode a necessidade do consentimento da pessoa lesada ser sacrificada à "liberdade religiosa" dos seus progenitores? O conceito de "mutilação" pertence ao domínio da ciência ou pode variar conforme as crenças individuais dos adultos e imposto aos mais frágeis e indefesos? Foi respeitado o princípio da separação entre o Estado e as igrejas?
A circuncisão masculina - remoção do prepúcio - e a mutilação genital feminina - remoção parcial ou total do clitóris - são procedimentos agressivos que sobreviveram até hoje graças à proteção religiosa que os ritualizou. Ainda que os níveis de brutalidade e as respetivas consequências médicas possam ser muito variáveis, estamos perante os mesmos preconceitos e as motivações próprias de um quadro cultural comum: o da sociedade patriarcal, agropastoril. Trata-se, quanto à sua raiz antropológica, dos mesmos preconceitos e motivações que submeteram as mulheres à autoridade dos homens e que ainda hoje lhes exigem que cubram a cabeça com um véu e que lhes vedem o acesso ao sacerdócio ou a progressão nas hierarquias eclesiásticas. Por tudo isso, era muito oportuno e desejável que os chefes religiosos que neste processo se mostraram mais ativos refletissem seriamente sobre estas matérias e que reponderassem, como dizia Hobbes, a distinção entre "superstição e fé verdadeira".