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O hino da União Europeia, a Ode à Alegria, cantada na Nona de Beethoven, está entre as músicas que não têm idade. Mas é de outra sinfonia que me lembro quando leio a emergência do apelo subscrito por dezenas de políticos e intelectuais europeus que acabam de anunciar a criação, para janeiro, do "Movimento 9 de Maio", uma "plataforma cívica federal", à escala de todo o continente, capaz de suster "os demónios populistas" à solta, agora animados pelo Brexit e pela vitória de Donald Trump.
Se nós, europeus, "não retirarmos rapidamente as devidas ilações destes acontecimentos, é mais que provável o colapso da União e a marginalização dos nossos interesses e dos nossos valores ": eis o clamor do manifesto subscrito, entre muitos outros, por Felipe Gonzalez, Wim Wenders, Joschka Fischer, Daniel Conh-Bendit ou a antiga ministra portuguesa Maria João Rodrigues.
"Mais do que nunca, a urgência é criar os meios necessários para a reconciliação dos cidadãos com o projeto europeu e inventar um futuro para a Europa", lê-se no manifesto, qual toque de sinos a rebate em vésperas de grandes decisões eleitorais ou referendos previstos para os próximos meses, na Áustria, Itália, Holanda, França ou Alemanha. Aí, onde avulta ameaça populista, que ganhou fôlego à custa do aumento das desigualdades, dos receios relacionados com a vaga de imigração, e perante a desconfiança generalizada nas elites políticas e financeiras sentadas no trono do euro, a olhar para o umbigo e a cantarolar o hino.
O apelo soa a música, mas agora outra: talvez a Número 7 de Shostakóvich, uma das sinfonias que ganharam o estatuto de lenda, popularmente conhecida por Leninegrado (antiga e atual São Petersburgo), por ter sido estreada na segunda cidade russa durante o cerco por tropas nazis.
Conta a história que, quando a fome já fazia tantos estragos como os tiros na linha da frente, o diretor de orquestra convocou os músicos sobreviventes para interpretar a sinfonia que acabara de compor em plena tragédia. Apareceram quinze, famintos mas ainda com forças para tocar instrumentos que requeriam toda a sua energia. Afinal, conseguiram! Com a ajuda de altifalantes, a música ecoou por toda a cidade e animou as linhas de defesa.
À procura de sintonia, numa orquestra onde cada um toca para si, a cimeira europeia prevista para a capital italiana, no próximo dia 25 de março, assinalando o 60.º aniversário do Tratado de Roma, é talvez a oportunidade para os nossos líderes ouvirem também Shostakóvich antes da Ode à Alegria a que todos aspiramos. E, já que ali vão..., aproveitem e vejam o Papa.
*DIRETOR