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Fui ver "Sirat", o filme do realizador galego Oliver Laxe, premiado em Cannes, sabendo vagamente que era passado em Marrocos e que tinha a ver com a cultura rave. Apenas isso. Foi um atropelamento! Saí do cinema revoltadíssima, indignada com o grau de violência existencial a que havia sido sujeita. Logo eu que não tenho estrutura para filmes tristes, disponibilizei-me (totalmente desavisada), depois de uma pizza na esplanada numa noite esplendorosa de agosto, para um choque frontal com o filme mais duro e arrasador que as últimas décadas pariram.
A narrativa é simples. Um pai vai, com o filho pequeno e o cão, procurar uma filha desaparecida no meio de uma rave em Marrocos. A figura desse homem comum, de meia-idade, reconhecível, acompanhada de uma criança e de um pequeno animal de estimação, cria um sentido de empatia e de familiaridade que funcionará como uma bomba-relógio no nosso coração. O encontro com um grupo de nómadas do techno, que rapidamente se relevam muito prestáveis, apesar do seu aspeto alternativo e aparentemente duro, acrescentou o conforto da solidariedade humana à expectativa de sublimação que ingenuamente teimo em levar para a sala de cinema. Mas à medida que a tensão vai aumentando, e que tudo o que pode correr mal vai correndo pior ainda, a abóbada de esperança, que todo o ser humano constrói para suportar a arbitrariedade da vida, desaba violentamente sobre as nossas cabeças, num esmagamento fatal.
À medida em que os ecos de uma terceira guerra mundial se vão confirmando em sinais bastante concretos, tudo faz adivinhar o fim do Mundo. Apesar disso, os protagonistas avançam na sua missão, percebendo-se rapidamente que esse fim é inescapável e que não há quem consiga ignorar o apocalipse, porque ele é antes de tudo pessoal. "Sirat" obriga-nos a engolir o arco-íris do "vai ficar tudo bem", sem nos permitir alcançar sequer um copo de água para empurrar. Confirmando que o deserto em redor nunca será maior que o vazio interior e que a morte pode parecer minúscula, diante do desespero, fez-me desejar (pela primeira vez e com todas as minhas forças) que um personagem, no qual depositei toda a minha empatia, pusesse fim à sua vida.
Exausta e indignada, saí do cinema a praguejar, porque num tempo como este, expostos como estamos a tanto desespero real, revolta-me profundamente que tanto talento, arte, sensibilidade, beleza e música, tenham sido investidos nesta terraplanagem. Dizem que o filme nos obriga a olhar nos olhos da morte, para desistir de procurar um sentido e, diante do vazio, encontrar a espiritualidade. Talvez estejamos a precisar e provavelmente só funciona de supetão, tipo terapia de choque, como aconteceu comigo, mas acho que precisamos ainda mais de olhar nos olhos da vida e diante da sua urgência, cultivar a esperança que nos mobiliza para a luta!