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A candidatura de António Sampaio da Nóvoa encarna com rigor e fidelidade a missão constitucional do Presidente da República. É uma candidatura independente que não precisou dos aparelhos partidários para se anunciar mas que mereceu a bênção dos três chefes de Estado que ao longo de 30 anos conferiram ao cargo o prestígio e a autoridade devida: Ramalho Eanes, Mário Soares e Jorge Sampaio. O sistema semipresidencial português atribui ao Presidente poderes extraordinários que lhe permitem demitir o Governo, dissolver a Assembleia da República e antecipar as eleições legislativas. Além disso, cabe-lhe também um relevante poder de iniciativa na formação do Governo que se traduz na sua competência exclusiva para a nomeação do primeiro-ministro. É este conjunto de atribuições - estranhas, pela sua natureza, ao regime normal das democracias parlamentares - que justifica, em Portugal, a eleição do Presidente da República por sufrágio universal e direto. Uma eleição para a qual já fomos convocados e que terá lugar no próximo dia 24 de janeiro, precisamente, daqui a um mês.
Ainda que as atribuições extraordinárias que acabamos de enumerar possam induzir alguma confusão - tal como se viu recentemente no processo de nomeação do atual primeiro-ministro - não é, de todo, função do Presidente, governar o país. Em primeiro lugar, o Presidente não pode escolher o primeiro-ministro que muito bem lhe apeteça. Bem pelo contrário, está constitucionalmente vinculado à consideração dos "resultados eleitorais" e tem de ouvir previamente os "partidos representados na Assembleia da República". Em segundo lugar, a iniciativa presidencial em matéria de formação do Governo está estritamente limitada à nomeação do primeiro-ministro. Todos os restantes membros do Governo são nomeados "sob proposta do primeiro-ministro" e todos respondem apenas perante ele e "perante a Assembleia da República". Por último, também a aprovação do Programa do Governo - condição indispensável para que o Executivo possa assumir a plenitude dos seus poderes - é da exclusiva responsabilidade do Parlamento. Portanto, o Presidente não governa. A sua missão constitucional é zelar pelo "regular funcionamento das instituições democráticas" e os poderes que detém são instrumentos de moderação para prevenir ou superar eventuais crises políticas de excecional gravidade. Em contraste com as ambiguidades e hesitações reveladas pelo Presidente cessante na formação do Governo, na sequência das eleições legislativas de outubro, Sampaio da Nóvoa mostrou que sabe interpretar devidamente o seu papel e o sentido da vontade democrática, no quadro constitucional do princípio da separação dos poderes.
O papel original que a Constituição atribui ao Presidente é o reflexo de um preconceito antidemocrático ancestral, alimentado pela ditadura salazarista durante meio século. Foi o receio do sectarismo e da partidarização excessiva da política parlamentar que levou a Assembleia Constituinte, em 1976, a adotar um figurino presidencial em que a força legitimadora da eleição por sufrágio direto e universal do Presidente da República parece contrastar com a sobriedade das funções que desempenha quotidianamente, enquanto agente moderador da conflitualidade política, fator de estabilidade e intérprete prudente do sentimento popular. É verdade que, historicamente, o semipresidencialismo assegurou com êxito a transição pacífica do poder militar para o poder civil, e da legitimidade revolucionária para a normalidade democrática, numa primeira fase, pela mão de Ramalho Eanes e, mais tarde - com a revisão constitucional de 1982 e a consolidação da democracia parlamentar - pela mão de Mário Soares.
Um Presidente sóbrio e prudente, distante da conflitualidade quotidiana entre o Governo e a Oposição mas sensível às mais profundas aspirações populares, é uma fonte de confiança na Democracia. Sem dúvida, é de confiança que hoje carece a vida política. Confiança para ultrapassar o estado de profunda degradação institucional com que a sociedade portuguesa se confronta, ao cabo destes últimos quatro anos de cinismo, leviandade e experimentalismo pseudoliberal. Sampaio da Nóvoa é o candidato que melhor interpreta a recusa dessa "apagada e vil tristeza" a que um povo inteiro parecia condenado, e revela-se capaz de suscitar a inspiração cívica indispensável para retomarmos com energia os combates da justiça, da solidariedade, do desenvolvimento.
*DEPUTADO E PROFESSOR DE DIREITO CONSTITUCIONAL