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A uma ministra demissionária como Marta Temido, António Costa exige um último esforço, um derradeiro acervo de agonia, que vá para além da "troika" interna montada no partido e num governo que, a determinado momento, a desgastou tanto como uma epidemia e para além do qual - tal como a "troika" - não poderia ir. O pedido de demissão de Marta Temido comprova que é mais difícil gerir o SNS do que lidar com uma pandemia. A vontade de António Costa em a manter até ao próximo Conselho de Ministros (onde apresentará o diploma que regula a nova direcção executiva do SNS) vem confirmar que o Governo continua a lidar com a saúde pública recorrendo a paliativos. Por força dessa abordagem, o SNS já deu entrada nos cuidados intensivos.
Ninguém lidera um Ministério da Saúde sem cometer erros ou deslizes. Algumas das últimas declarações de Marta Temido são já um sinal de desgaste, falta de adesão à realidade ou de tentativa de salvar algo que não apenas a sua pele de ministra. Páginas últimas, não se compreendia a defesa de políticas e dotações que condenavam a sua acção ao insucesso e que comprometiam um horizonte e visão de futuro para o SNS. Nos momentos derradeiros, já não se percebia se as forças de bloqueio estavam dentro do governo ou se era a ministra que bloqueava o diálogo com o sector. O pedido de demissão comprova, também, que um governo de maioria absoluta que abraça reconduções de ministros que pediram várias vezes para sair fica mais próximo da fragilidade.
Há dois meses, Marta Temido era a ministra com melhor índice de aprovação deste Governo. É gratuito, injusto e lamentável cair na tentação de a culpabilizar, a título pessoal. Boa parte dos ataques que lhe são dirigidos vêm daqueles que sempre foram um obstáculo ao investimento no SNS. A responsabilização é colectiva, nada surda, nada muda, e de vários governos. Quando se olha para o SNS, vemos o produto do sucessivo desinvestimento que se arrasta desde a "troika", da falta de acordos sobre condições de trabalho e da incapacidade para segurar os seus profissionais, da falta de autonomia dos hospitais para contratar numa política descentralizada e de proximidade, da falta de determinação em criar uma carreira de Técnicos Auxiliares de Saúde, da falta de incentivos à adesão e exclusividade dos profissionais de saúde. O que faz falta.
Verificam-se agora boa parte das razões que levaram o BE e, depois, o PCP, a romper com a aprovação de sucessivos orçamentos do Estado. A realidade impõe-se e não resiste ao "ratio" entre os profissionais que entraram e saíram do SNS e à precariedade dos respectivos vínculos, às horas extraordinárias humanamente incomportáveis, ao caos nos serviços de urgência e à disparidade salarial entre quadros e prestadores de serviços. Mas que não restem dúvidas: a saída de Marta Temido abre portas a um amplo ataque de sectores, interesses económicos e políticos, nada interessados numa visão pública e inclusiva do SNS. Compete a António Costa dizer, finalmente, ao que vem: se ao reforço ou se à destruição do SNS.
o autor escreve segundo a antiga ortografia
*Músico e jurista