Só quer a vida cheia quem teve a vida parada *
1. Passados 44 anos sobre o 25 de Novembro de 1975, esta data transformou-se no lugar simbólico de peregrinação anual das direitas: da mais arcaica e da mais recente.
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A sua motivação psicológica é sombria: azedume, mau perder, ressentimento inconsolável. Contudo, a intenção política é muito clara e só não enxerga quem não quer ver que a invocação do espetro do anticomunismo visa exorcizar as sucessivas vitórias parlamentares da Esquerda e os sucessos da governação socialista. Finalmente, a efeméride escolhida é absurda: assinala apenas a data de uma operação militar cujo sentido logo foi esclarecido por Melo Antunes quando, em nome do MFA, contrariou as falsas esperanças dos saudosistas da ditadura para reafirmar que o contributo dos comunistas continuava a ser indispensável para a construção do novo regime democrático. Mais do que a data da operação militar, merecia ser recordado o comício do PS, na Fonte Luminosa, a 19 de julho do mesmo ano, e o discurso histórico que, na circunstância, ali proferiu Mário Soares.
2. O processo de transição para a democracia constitucional - o PREC (Processo Revolucionário em Curso) - foi breve, pacífico e reconhecido internacionalmente como um processo exemplar. Começou pelo golpe militar que libertou o país de quase meio século de ditadura, a 25 de Abril de 1974, e culminou na aprovação, a 2 de abril de 1976, da Lei Fundamental pela Assembleia Constituinte, eleita um ano antes. Logo nas primeiras linhas, os deputados constituintes - com a exceção, apenas, do CDS - reconhecem que "libertar Portugal da ditadura, da opressão e do colonialismo representou uma transformação revolucionária e o início de uma viragem histórica da sociedade portuguesa" e prometem "abrir caminho para uma sociedade socialista, no respeito da vontade do povo português, tendo em vista a construção de um país mais livre, mais justo e mais fraterno".
3. A queda do fascismo não foi uma dádiva dos céus nem um capricho de militares descontentes. Foi fruto da coragem de todos os que não se resignaram e lhe deram combate ao longo de quase 50 anos: republicanos, anarquistas, comunistas, socialistas, sociais-democratas ou democratas-cristãos. A Constituição democrática de 1976 é a síntese final de todos esses contributos e também o reflexo das lições aprendidas na turbulência inevitável, por vezes dolorosa, da construção de um novo quadro de convivência ética, cívica e política. São estas as datas que merecem comemoração: o fim da ditadura, a 25 de Abril de 1974, as primeiras eleições livres, para a Assembleia Constituinte, a 25 de abril de 1975, e a votação final do texto da nova Constituição, a 2 de abril de 1976!
* Sérgio Godinho, "Liberdade"
*Deputado e professor de Direito Constitucional