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Por muitos anos, Mário Soares era um nome que surgia nas referências da oposição democrática à ditadura. Vi-o fisicamente, pela primeira vez, em 1969, à porta da Sociedade Nacional de Belas Artes, em Lisboa, numa noite em que o então líder da oposição socialista pretendia aí fazer uma "sessão de esclarecimento". A Polícia proibiu o "ajuntamento" e ouvi Soares, com voz forte e indignada, a contestar a decisão diante do famigerado capitão Maltez, antes deste ter ordenado a dispersão daquelas dezenas de pessoas, "por ordem do Governo". Lembro-me bem de Soares perguntar, jocoso: "E que ministro é que deu a ordem? O da Agricultura?". Um grande jarrão à entrada de um vizinho restaurante chinês, atrás do qual me refugiei com uma amiga, ia sendo a vítima colateral da subsequente fuga dos circunstantes.
Ainda iria cruzar com Soares, nesse ano, em duas outras reuniões da oposição. Eu estava então noutra onda, longe das suas ideias, mas apreciava-lhe a coragem e a determinação políticas. Depois das "eleições" de outubro desse mesmo ano, em que Soares e os seus amigos socialistas tiveram um resultado bastante fraco, ele saiu do país e iria ser obrigado a permanecer no estrangeiro, sob pena de ser preso, se regressasse. Só cá chegaria em 29 de abril de 1974.
Nunca falei com o ministro ou o primeiro-ministro Mário Soares. Mas recebi-o na Noruega, como líder da oposição, em 1980. Passariam 13 anos até voltar a encontrá-lo. Foi em 1993, em Londres, na nossa Embaixada, aquando da sua visita de Estado, como presidente da República. Falámos então bastante de episódios da luta contra a ditadura e dos muitos amigos comuns. Criámos, a partir daí, uma relação de simpatia, que nunca mais se perdeu.
Em outubro de 1995, Mário Soares empossou-me como membro do Governo e, poucos dias depois, acompanhei-o a Israel e à Palestina, escassas semanas antes dele abandonar Belém. Lembro-me de uma frase que então me disse: "Sabe que, em 10 anos como presidente, esta é a primeira e a última vez que sou acompanhado, numa visita oficial ao estrangeiro, por um membro de um Governo da minha família política?". Era verdade. Estávamos ambos com Arafat quando o primeiro-ministro Rabin, com quem tínhamos almoçado horas antes, foi assassinado. E fomos ambos representar Portugal no seu funeral.
Convivi depois bastante com Mário Soares. Prefaciou e apresentou um livro meu. Tive a sua solidariedade em horas difíceis. Integrei a "comissão de honra" da sua frustrada terceira candidatura à Presidência da República, em 2006, que achei inconveniente mas que entendi ter o dever moral de acompanhar. Andei com ele pelo Mundo, de Oslo a Gaza, de Estrasburgo a Roma, de Londres ao Cairo, de Brasília a Paris. Tivemos muitas e longas horas de conversa - sobre pessoas, factos e ideias. Nem sempre concordei com Mário Soares, mas não me custa admitir que ele teve razão muitas mais vezes do que eu.
*EMBAIXADOR