Debaixo da dureza (e da rudeza) que a crise colou na epiderme de milhões de portugueses continuam a nascer e a crescer, nas mais diversas áreas do aprender e do saber, projetos que nos desenrugam e amaciam a alma. E que, mais importante do que isso, nos tiram, ainda que por momentos, o olhar do peso insuportável do quotidiano, projetando-o para o que está além e a que convencionamos chamar futuro. De curto, médio ou longo prazo.
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No fim de semana passado, a Academia de Música de Vilar do Paraíso (AMVP) fez o favor de nos puxar a atenção para um facto que tem tanto de ancestral como de esquecido: é na Cultura, na nossa Cultura e na que aprendemos e apreendemos com os outros e com o Outro, que se forja a identidade de um povo. Fê-lo mostrando, em dois dias seguidos, o fruto do trabalho (árduo, pelo que se percebeu) desenvolvido com os miúdos e os graúdos que estudam na Academia. Lá, na derme da AMVP, os vasos sanguíneos deixam correr a arte à custa de suor - e, às vezes, de lágrimas.
Sábado à noite: primeiro episódio. A enorme igreja de Arcozelo lotou-se para o espetáculo de Natal. Centenas de crianças e jovens que aprendem a tocar, a cantar e a dançar na AMVP subiram, à vez, a um improvisado mas composto palco para encher de brilho os olhos de quem os via e de gozo os ouvidos de quem os ouvia. Não é preciso ser grande entendido em música - e eu não sou! - para perceber que (quase) tudo batia certinho. Mais de uma hora de encantamento puro.
Domingo à tarde: segundo episódio. Numa das salas do Casino de Espinho, as peças de teatro musical exigiam já uma outra robustez e uma outra postura. A rapaziada tremeria? Nada disso. A mesma sobriedade, o mesmo empenho, a mesma luta para que tudo corresse direitinho. E correu. Mais uma hora de encantamento puro.
Nuno Feist, conhecido diretor musical que orientou um workshop durante os trabalhos, foi direto ao ponto, quando lhe passaram o microfone: "Não há povo que resista sem Cultura". É um daqueles truísmos que a realidade (ou melhor, a decisão política) coloca recorrentemente em causa. Porquê? Pela mais prosaica das razões: porque a pressão sobre os decisores é escassa, por um lado, e porque a sensibilidade dos decisores é nenhuma, por outro. Sucede que, parafraseando André Malraux, a Cultura não se herda, conquista-se. É essa, creio, a arma mais forte da AMVP - a intenção de dar aos interessados os instrumentos que ajudem a essa mesma conquista.
Claro: a AMVP é apenas um de entre muitos bons exemplos que podemos encontrar sob a epiderme da tristeza. Todos batalham pelo regresso a quadros de referência que (nos) sirvam de âncora e (nos) ajudem a contornar a chamada "crise de identidade" criada pelas sociedades ditas "modernas", ou "hipermodernas", que abalaram os (nossos) fundamentos identitários, trocando o fundamental valor da essência pelo secundário valor da exacerbada aparência. Está nos livros: menos Cultura é igual a menos identidade. Nenhum país se constrói e se ergue sem bases identitárias fortes. É esse imenso trabalho que se faz em instituições como a Academia de Música de Vilar do Paraíso.
Bom Natal!
