Na maioria do tempo em que estamos vivos não acontece rigorosamente nada de que nos possamos lembrar. Se tivermos sorte, conseguimos retirar algum sumo de um por cento de tudo o que fomos, das pessoas que conhecemos, dos amores que vivemos, das desilusões fortes, dos momentos fundadores ou destruidores. Num terço do tempo estamos de olhos fechados e gastamos energia nos caminhos para cá e para lá, nas conversas quase sempre de ocasião, na casa de banho, na cozinha e nas refeições, nos jogos e joguinhos, na repetição de tarefas, no arrumar da casa, nos supermercados, no telemóvel, nas respostas a emails, nas porcarias que vemos e lemos, nas más canções e nas pessoas desinteressantes que conhecemos. Mesmo quando estamos com quem amamos, mesmo aí, na maioria do tempo, não acontece nada de que nos possamos recordar. E quando caminhamos sozinhos, a mesma coisa. Temos os rituais, os nossos prazeres, as nossas fugas e as cruzes que carregamos, mas tudo espremido é pouco, quase nada. Momentos decisivos são muito poucos. Numa vida normal, contar-se-iam num único e solitário parágrafo. Mas é precisamente por isso que a vida é maravilhosamente radical. A vida é o que em nós acontece quando nada parece acontecer. Somos e definimo-nos mais no silêncio, e no que aparenta ser irrelevante, do que nas grandes ocasiões conversadas em todos os natais. A vida é-nos confortável quando estamos confortáveis connosco próprios, quando gostamos da nossa própria companhia. Estamos absolutamente por nossa conta, o resto é conversa e esquecimento.
Leitura: 2 min

