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Liga-se a televisão ou abrem-se os jornais e, subitamente, a política deixou o campo concreto da realidade das contas públicas para passar para um pretenso terreno ideológico em que, à boa maneira portuguesa, tudo se reduz ao rótulo, ao chavão. Durante anos, era tudo comunista. Bastava falar ou pensar em liberdade para se ser apelidado de comunista. Seguiu-se o fascista. Passou-se pelo capitalista versus o socialista. Meteu-se o socialismo na gaveta e parecia que tínhamos ficado sem rótulos. O que realmente não dava muito jeito a qualquer ministro ou deputado que viesse à televisão arrumar o assunto em poucos segundos.
Há anos que esta cena se repete. Em vez de discutirmos seriamente, de repensamos o papel do Estado, de olharmos para o ponto a que chegámos na dívida pública e as ameaças que pairam sobre nós, gritamos slogans ocos, a maior parte das vezes usados com evidente ignorância do seu significado, mas apenas como rótulo.
Na memória colectiva da vida política destes 30 anos de liberdade é reconhecido o esforço imenso que é necessário fazer para sair do slogan para a realidade da vida e aguentar a pé firme a gritaria. Não é por acaso que os partidos portugueses nestas guerras verbais mudaram de nomes ou acrescentaram vagos conceitos estranhos ao nome. O CDS acrescentou PP, o PPD passou a PSD, o PS virou rosa e cor-de-rosa.
Agora que o país chegou a um duríssimo impasse económico, financeiro e político voltámos rapidamente ao slogan. O slogan da moda é chamar liberal, acrescentando "direi mesmo neoliberal"!
Esta semana foram divulgados os dados do último semestre e a dívida pública aumentou. Gastamos mês a mês mais do que produzimos e, dia-a-dia, a situação agrava-se. Todos sabemos que o Estado gasta de mais e emprega de mais. Mas todos sabemos que a resolução da questão significa agravar o desemprego e retirar direitos fundamentais na Saúde, na Educação, na Segurança Social.
Chegados a este impasse, é garantido que assistimos à gritaria destes últimos dias. Quem tiver a mínima proposta de medidas estruturais que mudem a situação e apontem caminho de saída mesmo ténue é recebido com um ataque de "liberal", direi mesmo "neoliberal", misturado com uma conversa vaga contra "esta" globalização e, quando se pretende ser mais "erudito", passa-se mesmo ao conceito de "neoliberal de capitalismo radical", ou vice-versa.
No seguimento e perante a força da realidade e o vazio dos rótulos, os primeiros-ministros portugueses costumam desaparecer para um cargo internacional na melhor das hipóteses.
A gritaria ignorante que se sucede nas tribunas televisivas seria até divertida de assistir se o país não estivesse na bancarrota. Tanto mais, chamar a alguém liberal ou neoliberal no momento em que os mais conservadores governos do Mundo têm de andar com os bancos e os banqueiros ao colo, para a economia não colapsar, como aconteceu com Bush ou com o governo alemão.
Quando se conheceram as propostas de revisão constitucional do PSD, vieram logo solenemente vários dirigentes socialistas explicar que se tratava de um caminho insuportavelmente "neoliberal".
A questão, porém, é que vivemos um impasse político e um calendário sem saída para o governo socialista. O PSD apontou o caminho a seguir em sede de revisão constitucional, à semelhança, aliás, do que fez Sá Carneiro quando, contra a opinião geral bem-pensante, incluindo no seu próprio partido, apresentou um projecto de revisão constitucional "escandaloso".
O governo socialista está agora condenado a ficar e a encontrar saída para a situação gravíssima que vivemos e, por muito que queiram ser socialistas, liberais, neoliberais, bonzinhos, ou o seu contrário, não há forma de fugir. Têm de garantir que, de 15 em 15 dias, o Estado português consegue financiar-se internacionalmente e que a dívida baixa no segundo semestre.
Normalmente, chegando a esta época do ano, o país parte de férias e esquece. Este ano, porém, não é assim. Os portugueses, conscientes da gravidade da situação e da incerteza do futuro, não partem a banhos e não é difícil imaginar o inferno de vida de qualquer ministro deste governo, impotente de fazer tudo o que sonhou para bem dos portugueses. Olhando alguns, imagino como gostariam de saltar das cadeiras do poder para as manifs da Avenida. Mas não. Não há como. Sinceramente, resta desejar-lhes alguns dias de férias, que a vida vai obrigá-los a fazer o que não querem e o que não desejam.