Sociedade algorítmica e confusão cognitiva nas CHS (II)
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À medida que a investigação fundamental nos aproxima, cada vez mais, do infinitamente pequeno as moléculas do nosso dispositivo cognitivo têm mais dificuldade em lidar com os diferentes estados da matéria, em constante ebulição com o pós-estruturalismo introduzido pelas grandes transições. Os conceitos que usámos durante tanto tempo e que estruturaram o nosso pensamento passaram rapidamente do estado sólido ao estado líquido e, agora, por via do aquecimento global e da revolução tecno-digital evaporaram-se completamente para a nuvem e o ciberespaço. É aqui que nos encontramos, no cloud capitalismo, na sociedade algorítmica, em estado de emergência e em completa confusão cognitiva. E quanto às ciências humanas e sociais (CHS), o estado da arte parece ser o salve-se quem puder!!
Recordo, aqui e agora, as principais transições e o sentido da sua mudança paradigmática, um Momento Polanyi de uma Grande Transformação:
1. Transição climática, a mudança de regime para o Antropoceno,
2. Transição energética, a descarbonização e circularidade da economia
3. Transição ecológica, a mudança de regime agroambiental e agroalimentar
4. Transição tecno-digital, a digitalização e a artificialização da economia
5. Transição laboral, a mudança na estrutura da produtividade do trabalho
6. Transição demo-migratória, a recomposição da estrutura social
7. Transição sociocultural, a mudança no capital simbólico e institucional
8. Transição geopolítica, a formação de um mundo multipolar
9. Transição securitária, as guerras híbridas e a cibersegurança
10. Transição democrática, em trânsito para uma democracia complexa
Estas grandes transições exigem às ciências humanas e sociais uma teoria crítica e um aparelho concetual e metodológico que sejam capazes de lidar com esta Grande Transformação. Entretanto, vivemos um momento paradigmático nas CHS em que a gordura concetual e epistemológica anterior das CHS está a ser substituída por um largo dispositivo tecno-digital, baseado na ciência dos dados, na programação algorítmica e numa bateria de aplicativos prontos a usar em quase todos os campos. Isto é, estamos a incorrer num risco elevado em que o pensamento complexo, narrativo e dialético da inteligência humana se vê confrontado com uma verdadeira reprogramação das mentes e, progressivamente, substituído por um pensamento binário, descomplexo, automático e maquinista de uma inteligência artificial geral e específica. Vejamos algumas manifestações deste alinhamento e desta confusão cognitiva.
Em primeiro lugar, a sociedade é, atualmente, um assunto interpretativo e muitos efeitos são não-desejados e não-intencionais. Estamos a caminho do estado gasoso da matéria, as novas categorias do social são muito voláteis, a saber, a virtualidade e a representação, o risco e a contingência, a simulação e a dissimulação. Estas categorias não deixam ver o princípio da realidade e a plurissignificação da realidade segrega tanta contingência como liberdade. Além disso, a cibercultura está fascinada pela confusão entre consciência e inteligência que passou a ser uma linha vermelha entre algoritmos orgânicos e inorgânicos, onde se aguarda, apesar de tudo, a esperança de uma revelação.
Em segundo lugar, estamos em plena digitalização e artificialização da sociedade, das pessoas e das coisas. Doravante, tudo é inteligente à maneira digital. Tudo adquire vida própria, o real é virtual e o virtual é real. Este é o futuro radioso prometido pela economia do Big Tech Data, qual mão invisível da liberdade de informação. Mais dados, sempre mais dados, e estaremos cada mais próximos da verdade, no grande bazar dos processadores de dados, dos algoritmos e dos meta-algoritmos. O racional do Big Tech Data é, portanto, encontrar a norma-padrão e, assim, prevenir contra a incerteza e o desvio da nossa imperfeita racionalidade orgânica.
Em terceiro lugar, num oceano de informação só os algoritmos têm a capacidade analítica para processar e tratar tantos dados irrelevantes de natureza infra pessoal. O Big Tech Data constrói assim uma nova linguagem comum e abre a porta a uma nova teoria do equilíbrio geral, uma teoria dos meta-dados que secundariza a nossa consciência emocional e intersubjetividade e institui uma personalização sem sujeito ou, então, várias personalizações e trajetórias onde alguns de nós podem escolher as suas narrativas.
Em quarto lugar, neste oceano de informação, nós, os humanos, somos um acontecimento informativo no grande fluxo de informação. Dos sinais infra pessoais aos padrões supra individuais, somos mais um reflexo do que uma consciência reflexiva, como se a vida se resumisse à personalização de um fluxo de dados. Para um algoritmo do Big Tech Data somos uma informação sempre atualizada, sem passado nem futuro, um presentismo sempre atualizado, uma otimização do quotidiano obtido pela vertigem digital desse quotidiano.
Em quinto lugar, à medida que o nosso comportamento converge para o padrão supra individual a correlação aproxima-se da causalidade, fica a personalização em movimento perpétuo e desaparece o sujeito, isto é, o algoritmo cumpre a sua tarefa. Tudo o que vem de trás, do velho humanismo, perdeu importância e foi sendo dissipado, a saber, os sentimentos, as distrações, os sonhos, os desejos, isto é, o nosso passado bioquímico e tudo o que fazia a inteligência emocional do ser humano individual. O comportamento desviante torna-se, doravante, um simples desvio-padrão.
Em sexto lugar, a velha ordem semântica dos conceitos científicos está em risco, pois dos algoritmos bioquímicos e orgânicos aos algoritmos eletrónicos e inorgânicos tudo cabe no universo do Big Tech Data. É como se os conceitos fizessem parte da velha cognição e revelassem uma margem de incerteza ou excesso de peso que já não se compadecem com o rigor metodológico da nova ciência cognitiva. A ciência dos dados e a IA não têm excesso de peso, é um novo universo cognitivo que emerge.
Em sétimo lugar, não são apenas os algoritmos que contam, pois nesta grande corrente pós-humanista do século XXI entram também os gadgets, as próteses, os órgãos biónicos, os sensores biométricos e os chips nanotecnológicos do homem aumentado; esta hibridação pós-humanista abre o caminho para dois debates interessantes: em primeiro lugar, o binómio inteligência-consciência e o limiar do deep learning consciente, em segundo lugar, a transferência eventual, por via deste deep learning algorítmico, para um universo transumanista, para uma nova variedade de espécie humana.
Por último, e sobre a governança da sociedade algorítmica, como é que o pensamento e a ação política lidam com estas novas corporações do Big Tech Data e do algoritmo? Recorde-se, os algoritmos tanto podem ser uma guarda pretoriana de um candidato a ditador, como a guarda avançada de um capitalismo global e predador como, ainda, uma rede distribuída de proximidade ao serviço de uma sociedade mais igual e democrática. Ao ser tudo isto, o algoritmo revela aquilo que nós já sabíamos, isto é, a sua funcionalidade instrumental ao serviço de homens sem rosto, que, geralmente, desprezam os limites da política e as responsabilidades públicas que lhe são inerentes.
Notas Finais
Estão em marcha alterações societais e civilizacionais de grande amplitude que apenas aguardam uma oportunidade para explodir à superfície. O que dissemos revela que estamos a assistir a uma inversão dos termos da equação entre os fins e os meios. Sabemos, da velha ordem, que os fins, só por si, não justificam os meios e que os meios nunca são determinísticos em relação aos fins, há, digamos, uma ética própria desta equação entre os fins e os meios. Todavia, diz-nos, agora, a sociedade algorítmica, não se preocupem com o livre-arbítrio, nós estamos em condições de traçar o caminho entre o determinismo e o aleatório. Basta que nos prestem toda a informação necessária, que nos cedam a massa imensa de informação que é debitada constantemente e a tempo inteiro em todos os suportes digitais. Se assim for, a um custo marginal zero e com rastreabilidade quanto baste, seremos os vossos cuidadores e a partir daí, com o vosso consentimento, o Big Tech Data usará o algoritmo apropriado para vos dizer o que vai ser o vosso futuro hoje.
A terminar, ficam alguns avisos para reflexão.
Desde logo, cuidado com as metanarrativas da sociedade algorítmica, sempre bem encenadas e coreografadas, que são outras tantas manobras de diversão para distrair, condicionar e intimidar a multidão e cada um de nós.
Em segundo lugar, à nossa academia, cada vez mais envelhecida e devorada pela vertigem mediática, importa lembrar que a ciência é cada vez mais necessária e cada vez menos suficiente, que a sociedade do risco global é uma sociedade de distribuição de riscos muito desigual, que a ação coletiva é cada vez mais necessária, mas, ao mesmo tempo, mais difusa, caótica e ineficaz; ao mesmo tempo, é preciso prestar muita atenção aos homens sem rosto que manipulam os modelos matemáticos da sociedade algorítmica e lembrar-lhes, sempre, o elevado grau de responsabilidade pública e clarificação democrática que eles nos devem.
Finalmente, é preciso preservar, a todo o custo, a nossa minúscula ilha de liberdade de consciência e espírito crítico e tanto mais quanto estamos em transição para outros universos de sentido e estado mental que o transumanismo e o pós-humanismo já puseram em movimento. E assim será, se for assim.