Sociedade tecno-digital e esfera pública (I)
A mudança estrutural da esfera pública.
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Os salões, os cafés, os clubes, os jornais locais dos séculos XVIII e XIX, a rádio, a televisão e a comunicação social do século XX, a internet, as grandes tecnológicas e as redes sociais do século XXI, representam três períodos fundamentais de mudança estrutural da esfera pública, tal como foi definida pelo filósofo alemão Jurgen Habermas em 1962 no livro com o mesmo título e depois em 2022 com o livro Uma nova mudança estrutural da esfera pública e a política deliberativa (Editora UNESP, S. Paulo). Igualmente reveladores, embora de uma perspetiva distinta, são as obras do filósofo espanhol Daniel Innerarity O novo espaço público (2006), A teoria da democracia complexa (2023), A liberdade democrática (2024), publicados pela Editora Teorema.
Em síntese, eu diria que o estado da matéria mudou muito ao longo destes séculos. Depois do estado sólido da modernidade e do estado líquido da pós-modernidade estamos hoje no estado gasoso da era tecno-digital. Ou, nas palavras de Daniel Innerarity, passámos da hierarquia para a heterarquia, da verticalidade para a transversalidade, da unilateralidade para o policentrismo, do limite do espaço público para o ilimitado da globalização, da centralização para a auto-organização e o autogoverno.
Quando consultamos as obras referidas somos assaltados por um sentimento ambíguo de nostalgia utópica e desencantamento realista, agora que, mais uma vez, observamos a profunda transformação do espaço público, em sentido amplo, no âmbito da transição tecno-digital em curso. De um lado, a política como propósito público e comum, como uma nova gramática dos bens comuns, o governo de missão e dos assuntos públicos e uma política deliberativa a condizer. Do outro lado, a privatização do espaço público, seja pelo narcisismo dos líderes, o poder das corporações e burocracias, as linguagens codificadas do protocolo algorítmico, o abandono dos deveres de cidadania e a desinstitucionalização do vínculo social, a encenação e a dramaturgia no espaço público em lugar da dialética argumentativa e, no final, o empobrecimento e o desencantamento da política e o espaço público como mero espaço de tramitação das reclamações privadas, um mero espaço procedimental e processual cada vez mais tomado pela digitalização, a automação e o protocolo algorítmico.
Aqui chegados, Habermas constata uma regressão política na esfera pública que é devida à sua digitalização e fragmentação, à desintermediação da comunicação social
cada vez menos operada pelos profissionais do jornalismo, à proliferação de desinformação e notícias falsas e, sobretudo, pela formação de esferas públicas concorrentes, sob a forma de bolhas e ilhas de intersubjetividade e outras tantas câmaras de ressonância.
É aqui que nos encontramos. Somos viajantes do ciberespaço, seres de realidade aumentada e virtual e nessa condição somos, por vezes, passageiros clandestinos que observam o espaço público como caçadores furtivos em busca de uma presa mais distraída e vulnerável. Nesta pulverização da esfera pública não parece haver muito espaço para a ética discursiva de Habermas que salientava a inclusão e a participação, a inteligibilidade e a verdade, a sinceridade e a correção normativa. Pelo contrário, cresce a poluição discursiva por via das redes sociais e da comunicação social mais convencional, por exemplo, os preconceitos e as ideias feitas, os factos não confirmados, o tráfico de influências e a publicidade enganosa, as perceções difusas e furtivas da realidade, o viés cognitivo e a propaganda vulgar, os simulacros de participação e os jogos de sedução.
Esta poluição discursiva afeta profundamente o modo de funcionamento democrático nos seus três pilares essenciais, a representação, a argumentação e a deliberação e, no final, o sistema de pesos e contrapesos do regime democrático. A título de exemplo, veja -se o que acontece, neste momento, com a democracia na América (EUA): os ataques à liberdade de imprensa são frequentes (1), as interferências no funcionamento do sistema judiciário são crescentes (2), os excessos cometidos no combate à imigração ilegal são evidentes (3), crescem as interferências no funcionamento das universidades e nos programas de apoio à ciência (4), os ataques aos mecanismos de discriminação positiva conhecidos por DEI são notórios (5), crescem os ataques aos direitos sociais e laborais (6), sobem as manobras de intimidação contra os advogados (7), é claramente contraproducente o uso abusivo das tarifas comerciais para inverter os saldos comerciais (8), é crescente a confusão nas relações político-diplomáticas mesmo entre países aliados (9), é abusivo e excessivo o uso dos poderes executivos excecionais como instrumento de governação e administração (10).
Dito isto, estamos claramente perante um dilúvio informativo e comunicacional e numa crise profunda do espaço público em sentido amplo onde se incluem as esferas privadas, as esferas públicas e a ação política das instituições do Estado-administração. Estamos, claramente, num período pós-estruturalista, de mudança estrutural da esfera pública nos termos de Habermas, onde a ação política não encontrou ainda uma forma de ser inteligente no novo contexto. Há, digamos, uma fadiga da política velha. Numa
sociedade inteligente, complexa e plural, todos, inclusive o poder político, são forçados a escolher entre a autoridade ignorante e a deliberação inteligente. Estamos, claramente, na fase da aprendizagem e ainda não ultrapassámos o nosso desencontro com as novas dimensões do espaço-tempo, as exigências da realidade aumentada e virtual, os movimentos de desterritorialização e extraterritorialidade, a digitalização, automação e artificialização das cadeias de produção, as novas modalidades de trabalho e regimes laborais e, bem assim, os novos relacionamentos e conexões entre o ator e o sistema.
A terminar, vale a pena, neste contexto de transição e aprendizagem, uma referência à educação e à cultura. Provocámos uma clivagem séria e grave na sociedade educativa, uma crise de iliteracia tecno-digital, porque a digitalização, a automação e a artificialização atravessam transversalmente toda a sociedade e não poupam ninguém. Esta mudança estrutural da esfera pública é, porventura, o principal desafio que a razão comunicativa defronta, seja no mundo trabalho como no mundo da vida como referia Habermas. Isto é, estamos perante uma verdadeira guerra das inteligências - emocional, natural, racional, artificial e criativa - e a ação política ainda não foi capaz de introduzir um princípio de ordem neste combate. Este facto reflete-se, também, no universo da cultura, ou seja, na construção de uma narrativa da cultura como razão instrumental do novo período de mudança estrutural em quatro universos fundamentais: a cultura como memória que permanece, a cultura como visão utilitária do presente, a cultura como visão utópica do futuro e, finalmente, a cultura como estratégia de interligação destes universos fundamentais do novo espaço público. Para terminar com Daniel Innerarity e a sua teoria da democracia complexa, é essencial promover a literacia mediática e a independência da comunicação social, valorizar a educação cívica e a doutrina dos bens comuns e assuntos públicos, combater ativamente a manipulação da verdade, criar as pontes entre a academia, a ciência e as políticas públicas e, no final, abraçar a democracia complexa e a política deliberativa da esfera pública do século XXI.