Sociedade tecno-digital e esfera pública (II)
Riscos sistémicos e níveis de servidão voluntária.
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Que traço comum ligará, hoje, em 2025, a servidão voluntária (La Boétie, 1548), a arquitetura do panótico (Bentham, 1787), o Big Brother do ministério da verdade (Orwell, 1948), o vigiar e punir das instituições de controlo social (Foucault, 1975), a singularidade da inteligência artificial (Kurzweil, 2006) e o algoritmo-mestre da aprendizagem automática (Domingues, 2017)?
Em primeira leitura, todos eles escreveram sobre a relação entre o poder e a liberdade, a liberdade que o poder autoriza e o poder que a liberdade consente. E na era digital da computação em nuvem, da inteligência artificial, da aprendizagem automática e do transumanismo, o que nos estará reservado?
Uma das facetas mais intrigantes do próximo futuro diz respeito à aceleração da sociedade tecno-digital e sua transferência para os domínios da liberdade individual e da vida quotidiana, isto é, a transformação de necessidades individuais, desejos pessoais e serviços públicos em objetos de consumo industrial que, doravante, ficam ao alcance e ao dispor da internet das coisas (IOT), da conexão generalizada e da indústria de serviços mercantilistas e customizados.
A grande transformação será, portanto, a desmaterialização e desintermediação de serviços e a sua transferência para plataformas online onde serão personalizados e customizados. No limite, podemos mesmo assistir ao outsourcing e privatização de alguns desses serviços e sua produção pelo mercado digitalizado. Os serviços públicos prestados pelo Estado e outras coletividades serão progressivamente substituídos por objetos e serviços privados prestados por plataformas tecno-digitais, ou seja, o Estado verá progressivamente os seus serviços públicos convertidos em serviços ao público coproduzidos e privatizados. Será a vitória de uma internet puramente mercantil, de uma sociedade tecno-digital nas mãos de plataformas e aplicações e comandada pelos mestres-algoritmos da sociedade algorítmica. Nesta sociedade domina o Big Data, a novilíngua cibernética, os novos códigos de linguagem e governança algorítmica, a inteligência artificial, os ambientes imersivos e a computação avançada que, no seu conjunto, determinam vários níveis de condicionamento e conformidade e, portanto, uma nova estrutura de poder, uma nova servidão voluntária, onde todos somos, ou podemos ser, ao mesmo tempo, predadores, sensores, delatores e censores.
Isto dito, somos, agora, utilizadores intensivos de plataformas, redes e aplicativos, no interior de um capitalismo neoliberal de características extrativas em que se observa uma clara regressão em matéria de direitos económicos, sociais e humanos. Este facto é deveras inquietante, pois impendem sobre nós vários riscos sistémicos e outros tantos níveis de condicionalidade e servidão voluntária. Senão, vejamos.
Em primeiro lugar, através das autoestradas da internet e informação estamos todos, em todo o lado, ao mesmo tempo. O risco sistémico e o perigo de colisão estão iminentes. Através da comunicação virtual todo o nosso universo pessoal está à distância de um click. Ora, o preço a pagar pela velocidade e ubiquidade nómada é a nossa total rastreabilidade. Este é o nosso primeiro risco sistémico. Na internet das pessoas e das coisas ficará o nosso rasto e história pessoais, isto é, a informação necessária e suficiente para o exercício da híper-vigilância que os diferentes prestadores de serviços não deixarão de manipular tendo em vista gerar fidelidade e conformidade em proveito próprio. Dado o lugar central ocupado pelo Big Data e a matéria-prima com a qual ele labora, tudo girará à volta da privacidade e da publicidade dos nossos dados pessoais. Num jogo permanente de sedução, distração e doutrinação, seremos colocados no que eu designo aqui como o primeiro nível de condicionalidade e servidão voluntária.
Um segundo risco sistémico diz respeito ao modo de funcionamento do universo socio-laboral na transição para a sociedade tecno-digital. A estabilidade, previsibilidade e segurança das relações socio-laborais foram perdendo consistência e durabilidade e passámos a falar de relações transitórias, passageiras, precárias, intermitentes, líquidas, com consequências nefastas também nas relações familiares e de amizade. Assim, o mais provável é que recomecemos várias vezes os nossos projetos de vida em ambientes socioprofissionais muito diversos, A pluriatividade e a topoligamia serão a regra, pois estaremos casados com várias atividades e lugares ao mesmo tempo. O mercado procura, no entanto, dissimular esta elevada precariedade com uma presumida relação pós-salarial onde deixámos de ser proletários, empregados ou funcionários para sermos os colaboradores, os trabalhadores independentes, os auto empreendedores. Porém, nesta presumida relação pós-salarial somos, agora, mais vulneráveis, precários, intermitentes, flexíveis e solitários e estamos em trânsito para um segundo nível de condicionalidade e servidão voluntária onde a mobilidade, o nomadismo e a flexibilidade serão os princípios ativos.
Um terceiro risco sistémico diz respeito ao eventual recuo do Estado social e à redução progressiva dos orçamentos públicos sobrecarregados de dívida pública
constituída ao longo do tempo devido à pressão para socializar os prejuízos de muitos riscos. Se tal acontecer, estaremos perante uma alteração estrutural fundamental na estrutura do Estado e da despesa pública, pois teremos poupado ao contribuinte muitos recursos que ele poderá canalizar para aplicações privadas, cooperativas e mutualistas. Se o nosso caminho for a cobertura privada do risco pessoal, que pode ser, também, cooperativa ou mutualista, estaremos a transitar para o terceiro nível de condicionalidade e servidão voluntária, desta vez a responsabilidade pessoal sobre nós próprios. Nesta nova condição, os chips, as próteses e os gadgets de autovigilância servirão, a todo o tempo, para ajustar o prémio de risco aos efeitos diretos e colaterais do nosso comportamento. As técnicas nanométricas e biométricas e as ciências cognitivas, por via de chips e sensores de todo o tipo, serão os censores impiedosos dos nossos comportamentos cujos sinais transmitirão, just in time, às companhias de seguro.
Um quarto risco sistémico diz respeito à elevada adição e toxicidade da sociedade algorítmica, ao percurso vertiginoso dos sistemas automáticos autónomos e às surpresas incomensuráveis geradas no universo da inteligência artificial e da aprendizagem automática, já para não falar do ponto de singularidade de Kurzweil que nos coloca à beira do transumanismo e pós-humanismo. Até lá, porém, e porque a inovação política e social corre muito mais lentamente, há o sério risco de ficarmos prisioneiros da elevada vertigem e contingência da sociedade algorítmica, prejudicados na economia da atenção e prontos, porque exaustos, para receber e aceitar o próximo Big Brother de George Orwell, isto é, para acolher com resignação um quarto nível de condicionalidade e servidão voluntária. Doravante, entre sensores vigilantes e censores furtivos, tudo pode acontecer, mesmo o absolutamente imponderável.
Um quinto risco sistémico diz respeito à redução do controlo democrático sobre uma república tecno-digital de características autocráticas onde as grandes plataformas, os grandes fundos financeiros e os políticos autoritários se entendem cada vez melhor. O lado mais sombrio de tudo isto tem a ver com a ausência de regulação política das grandes plataformas e dos chamados mercados biface, onde atuam, dominam e abusam os cartéis das grandes tecnológicas, onde somos bombardeados pelas grandes companhias de marketing e publicidade e onde a violação constante das liberdades públicas e dos direitos individuais de cidadania, privacidade e segurança nos transportam para um quinto nível de condicionalidade e servidão voluntária.
Notas Finais
Aqui chegados, neste território imenso, onde reina o hipercapitalismo GAFA (Google, Apple, Facebook, Amazon) e NATU (Netflix, Airbnb, Tesla, Uber) das grandes plataformas multinacionais, vamos, também, encontrar outros caminhos e vias abertas que são, igualmente, promissoras. Desde logo, e em ordem a uma intermediação pública mais inteligente e imaginativa, mais lateral e colaborativa, temos a oportunidade de caminhar em direção ao Estado em rede composto por cidades-estado e redes de cidades pequenas e médias que têm um enorme potencial distributivo por explorar e que, por essa via, podem oferecer uma nova gama de utilities e serviços colaborativos, cooperativos e mutualistas, de proximidade às suas populações.
Em segundo lugar, e na mesma linha de raciocínio, os novos interfaces tecnológicos e digitais tornarão possível a formação de inúmeras comunidades de autogoverno que alterarão substancialmente a atual oferta municipal. Trata-se, se quisermos, de uma espécie de condomínios abertos e colaborativos da era digital em múltiplos formatos e em interlocução permanente com todas as autoridades oficiais. Não surpreenderá, pois, que a autarquia convencional ceda o passo às comunidades de autogoverno e suas associações.
Em terceiro lugar, o mito libertário original, de uma internet primordial ao serviço dos cidadãos que remonta ao período romântico dos anos setenta e oitenta do século passado já lá vai, mas é interessante registar hoje um movimento de regresso aos comuns informacionais e cognitivos, que está para lá, evidentemente, da ideologia proprietária que ainda domina largamente o capitalismo, como é o caso dos direitos de propriedade intelectual. Estamos no campo dos bens comuns colaborativos e da chamada utopia dos pares onde se discute a melhor configuração possível para os ecossistemas digitais e os ambientes inteligentes que sejam acessíveis aos novos coletivos que nos representam. A grande via dos bens comuns colaborativos merece muito maior atenção por parte da nova economia política, pois há aqui uma enorme margem de progresso na boa direção.

