Sociedade tecno-digital e esfera pública (V)
A deliberação democrática e a opacidade da sociedade algorítmica
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A transição tecno-digital é a grande força transformadora do nosso tempo, feita de liberdade e transgressão, mas, também, de condicionamento e manipulação. Os dispositivos tecnológicos, desde o infinitamente pequeno das nanotecnologias até ao infinitamente grande da robótica inteligente, as plataformas digitais e a esfera pública comunicacional, a inteligência artificial (IA) e os múltiplos ambientes imersivos, convidam-nos ou impelem-nos para uma viagem que nos pode levar para lá dos limites do ser humano, em direção ao transumanismo e à pós-humanidade. Doravante, a informação bruta e os sinais infra pessoais produzidos pelas tecnologias da informação e comunicação são a matéria-prima do século XXI e a economia das multidões a principal força propulsora.
Nesta viagem plena de significado, a transformação tecno-digital produz inúmeros efeitos externos, alguns círculos virtuosos e viciosos e outras tantas pegadas ecológicas e digitais mais ou menos pronunciadas. Um dos aspetos fundamentais que merece ser sublinhado diz respeito à transição que se verifica entre a transparência da deliberação democrática e a opacidade da sociedade algorítmica, introduzida pelas máquinas inteligentes e o protocolo algorítmico. Estamos no campo contributivo do filósofo Paul Virilio acerca das relações entre velocidade, tecnologia e política. É neste novo metabolismo sistémico induzido pela transformação tecno-digital que emerge uma alteração essencial, a saber, a velocidade das transições excede o tempo da política e muda a nossa perceção do tempo e do espaço, originando uma nova mudança estrutural da esfera pública e comunicacional, como refere o filósofo Habermas (Habermas, 2023). A consequência imediata desta nossa migração para o universo do ciberespaço é a criação de um ambiente imersivo de tal ordem vertiginoso e alucinante que o risco de colisão e a iminência do acidente passam a estar sempre presentes.
Ora, uma dessas colisões frontais iminente nas sociedades ocidentais envolve a crise da deliberação democrática e os seus processos e procedimentos. De facto, o tempo lento da política deliberativa, que é o tempo da arte do compromisso social, não se compadece com o infinitamente pequeno do tempo instantâneo, o tempo infra, o tempo do reflexo e não da reflexão, tudo isto por que o tempo humano foi ultrapassado pelo tempo-máquina e o poder gradualmente delegado nas máquinas do tempo. De certo modo,
a História transferiu-se da Terra para o Céu (o ciberespaço e a computação em nuvem!!), a aceleração do tempo tornou o mundo plano e nele emergiram os não-lugares onde a identidade dá lugar à rastreabilidade e à vigilância. É, mesmo, uma mudança do espírito do tempo e dos lugares.
Aqui chegados, onde antes encontrávamos os direitos humanos e o exercício da cidadania no âmago da política democrática e deliberativa, onde o consenso convivia com o princípio do contraditório, o governo da maioria respeitava os direitos das minorias e os pesos e contrapesos da divisão tripartida dos poderes marcava o ritmo das instituições e da sociedade, agora, o cidadão e a cidadania deixam de ser o centro do sistema político para mergulhar, cada vez mais, num ambiente geralmente imersivo onde o produto somos nós, um cidadão normalizado e condicionado. Ou seja, agora, o cidadão é produzido por um sistema de poder que escapa, cada vez mais, à divisão tripartida dos poderes, considerada ineficaz e ineficiente. Para o substituir, a santa aliança entre as grandes corporações tecnológicas multinacionais, o capitalismo financeiro dos grandes fundos e os homens políticos autoritários propõe um sistema de poder tecno-digital, uma sociedade algorítmica, onde o cidadão só tem de obedecer ao protocolo e aos procedimentos algorítmicos. Dito de outro modo, onde antes vigorava a cidadania, a competição saudável, a utilidade social do respeito e a divisão tripartida dos poderes, vigora, agora, a degradação dos direitos e da esfera pública, a extração de informação do nosso excedente comportamental, a predação de recursos e de valor económico, a servidão e a alienação dos utilizadores-consumidores por intermédio das plataformas e redes sociais. Acresce, ainda, para mal do compromisso democrático, a desconstrução dos modelos de linguagem da cultura geral devido aos desvios constantes da nossa economia da atenção, mergulhada, como está, numa vertigem alucinada de informação caótica onde a aceleração do tempo nos impede de ver a diferença entre verdadeiro e falso, o défice de empatia entre seres humanos e os vieses cognitivos que nos fazem cometer erros recorrentes.
A grande questão de sociedade que se impõe é, então, esta: perante a crescente digitalização da sociedade, vamos nós reinventar o grande compromisso da política democrática e deliberativa ou vamos ceder face a uma outra física social, engendrada por máquinas inteligentes e algoritmos, que nos confinam e condicionam por meio da sua opacidade, normalização e padronização dos nossos comportamentos?
Estamos, de facto, num momento charneira da nossa vida coletiva, seja ao quotidiano ou na política institucional, entre a transparência da democracia deliberativa, um compromisso sempre renovado, mas institucionalmente oneroso, e a opacidade de um regime pós-democrático e autoritário que ignora a divisão tripartida dos poderes e substitui largos setores da administração convencional por protocolos e procedimentos tecno-digitais da sociedade algorítmica. Existe, obviamente, uma terceira via, mais moderada e gradual, que, sem perder os benefícios sociopolíticos da deliberação democrática e da divisão tripartida dos poderes, tira partido dos benefícios de mais e melhor eficácia e eficiência que nos trazem os dispositivos tecno-digitais da sociedade algorítmica.
Já sabemos que a nossa racionalidade é limitada, mas fomos capazes de encontrar um fundo comum de discussão em que a contextualização, a argumentação e o contraditório fazem parte da nossa racionalidade comunicativa. Esta é a base da nossa esfera pública democrática tal como a conhecemos no mundo ocidental onde a divisão tripartida dos poderes e as liberdades públicas asseguram, apesar do ruído, o compromisso da política e a política do compromisso.
Ora, a transição para a sociedade tecno-digital faz emergir uma outra fileira, mais próxima de uma física social, onde a ciência dos dados, a programação matemática, a lógica algorítmica, as máquinas inteligentes e a inteligência artificial aparecem como um equivalente funcional da esfera pública e da vontade geral. Ela quer-nos convencer de que a racionalidade tecno-digital é superior à racionalidade do agir comunicacional e à sua fileira de discussão, argumentação e comunicação. Há, porém, uma dificuldade. Nós não somos como as abelhas ou as formigas que funcionam de acordo com as leis de uma certa física social e, além disso, os enxames digitais são bolhas de consumo e comunicação muito perigosas. Nós pensamos com o corpo todo. Não obstante, a tendência da sociedade tecno-digital acentua-se, o espaço público democrático é, cada vez mais, centrifugado pelas plataformas descentralizadas e distribuídas que se revelam incapazes de ação cognitiva e política consequente.
Notas Finais
Este é o confronto direto ou a coabitação em que vivemos atualmente. De um lado, a diversidade representativa e a opinião dos outros, uma racionalidade própria da democracia política. Do outro, a privatização e tribalização da internet e a revisão dos
factos em nome de uma verdade identitária e corporativa, uma racionalidade própria da democracia populista e demagógica. No final, o mais provável é que estas duas racionalidades passem a coabitar e interagir na sociedade tecno-digital. Por um lado, não podemos prescindir do compromisso da política porque um somatório de esferas privadas não faz uma esfera pública e as desigualdades sistémicas não foram eliminadas, por outro, os instrumentos da sociedade digital são muito preciosos para construir a convergência entre valores individuais e valores sociais.
Em síntese, a guerra está aberta. Na sociedade tecno-digital não podemos prescindir da política e do seu compromisso, embora os utilitaristas do Big Data e da IA afirmem que seria muito útil prescindir da política. Felizmente que os algoritmos, por mais inteligentes que sejam, não eliminam a memória, a contingência e a imaginação, pois a verdade é uma construção social e isso dá sentido à vida em comum, o seu fundamento existencial. É certo, a saturação informativa desvia a nossa atenção e faz-nos perder o impulso para a verdade que foi parcialmente privatizada. Não podemos tolerar que a embriaguez informativa mantenha as pessoas na ignorância e que a vertigem da informação crie uma agitação no sistema cognitivo que destrói a perceção da realidade e a ação racional. Seja como for, o cenário de guerra já aí está: trolls, social bots, contas falsas, fake news, desinformação, ódio, tweets, memes, vídeos, fotomontagens, vírus mediáticos. Uma total opacidade que nos obriga a dominar, cada vez mais, os dispositivos tecno-digitais. Enquanto fazemos essa aprendizagem, voltemos, porém, ao essencial: o bem comum, o bom senso, a ética do cuidado, a utilidade social do respeito e a empatia, o fundo comum das coisas, a cultura comum, ou seja, tudo o que faz uma linguagem de programação socio-antropológica e cultural. A busca pela verdade é um regulador da vida em comum porque nos proporciona o caminho do reencontro. Não troquemos, nunca, os fins pelos meios, esta é a nossa aprendizagem mais essencial.

