Sociedade tecno-digital e esfera pública (VI). O controlo democrático da república digital
Estamos em 2025, comemorámos, o ano passado, meio século sobre o 25 de abril de 1974. Vale a pena marcar essa diferença e fazer o diagnóstico da sociedade pós-moderna da era tecno-digital. Há meio século foi uma disrupção da política doméstica e colonial, agora acontecem várias disrupções globais que instabilizam a nossa existência, entre elas aquelas que se repercutem no controlo democrático da república tecno-digital. Com efeito, estamos todos colados aos limites da terra-mãe e começa a escassear o espaço-tempo para nos abrigarmos das bombas de disrupção global que nos atormentam e enlouquecem. Refiro-me às bombas globais que o Homem, através da ciência e tecnologia, colocou à nossa disposição, a saber, as bombas químicas e genéticas, informáticas e cibernéticas, nucleares e ciberespaciais, para lá de todas as ameaças contidas nos novos dispositivos de guerra tecno-digital.
Por outro lado, os sistemas políticos democráticos estão claramente em risco, não apenas devido à formação de cartéis de interesses convergentes entre as grandes tecnológicas, os grandes fundos financeiros e alguns políticos autocratas, mas, também, por uma preferência crescente pela autonomia e automatismo dos dispositivos tecno-digitais e, em especial, os dispositivos das máquinas inteligentes, a inteligência artificial e a computação avançada. A realidade é, cada vez mais, paradoxal, o futuro já aí está, mas ainda não sabemos como lá chegar, pois a tirania do tempo real não nos deixa tempo para nada. A democracia precisa de renovar a confiança dos cidadãos, é uma reflexão comum, não um reflexo condicionado. 50 anos depois do 25 de abril fica a sugestão, não se trata de desacelerar, mas de procurar uma inteligência do movimento, uma economia política da velocidade
No mundo em que vivemos já ninguém sabe muito bem onde colocar os limites do razoável e do bom senso. No preciso momento em que se criam vários modelos de linguagem, só falta, mesmo, uma novilíngua e o seu Ministério da Verdade, uma máquina semântica de achatar significados, ou seja, de mentir. À medida que os dispositivos da sociedade tecno-digital tomam conta das nossas relações e, por sua causa, utilizamos máscaras que nos tornam cada vez mais invisíveis, tudo pode acontecer à nossa volta, mesmo os maiores imponderáveis. Por favor, tenha cuidado, agora não deve perder, mesmo, a sua capacidade de atenção, o discernimento e o espírito crítico. Nunca foram tão necessários. Senão, vejamos.
Em primeiro lugar, há um divórcio manifesto entre a política, local e doméstica, e o poder, global e extraterritorial, isto é, o poder real está fora das fronteiras nacionais. Perante isto, o Estado-nação, tal como o conhecemos, é impotente. A democracia doméstica não convence, é pouco efetiva e é arrastada por esta crise do Estado-nação. É preciso aprender a lidar com os efeitos da extraterritorialidade tecno-digital.
Em segundo lugar, a democracia doméstica só agora aprende a lidar com o universo digital, mas as contradições são inúmeras. As comunidades virtuais online também são extraterritoriais e não se identificam com as antigas comunidades reais offline. A cultura conectada é uma bricolage permanente, muitas vezes é uma verdadeira caricatura, o discurso público é, cada vez mais, retórica pura e o espaço público está muito fragmentado para ser representativo e eficaz. É preciso aprender a lidar com o universo fugaz e furtivo da sociedade tecno-digital.
Em terceiro lugar, o capitalismo metamorfoseia-se numa versão mais cognitiva, criativa e cultural, agora mais sedutora, omnipresente na vida quotidiana e distribuindo sensibilidade, empatia e felicidade. O risco de alienação é enorme e está em causa a nossa economia da atenção, pois o acesso fácil e rápido ao oceano de informação que a internet e os motores de buscam proporcionam é uma verdadeira armadilha e deve ser tomado com conta, peso e medida. É preciso aprender a lidar com as falhas recorrentes da nossa economia da atenção.
Em quarto lugar, a tecnologia é fonte de velocidade, a velocidade é fonte de poder e a cada velocidade corresponde uma leitura da realidade. O espaço seguro declina, a colisão e o acidente são iminentes. As perceções de medo crescem e são muito superiores às ameaças. O paradoxo acentua-se, uma atenção urgente, uma distração permanente. A insegurança cresce, sofisticam-se os regimes de urgência e emergência e a sociedade da vigilância para prevenir as surpresas e os acidentes inesperados. É preciso aprender a lidar com um poder que delega cada vez mais nas máquinas autónomas e inteligentes.
Em quinto lugar, a imagem prevalece sobre a linguagem. A emoção prevalece sobre a opinião. Os écrans prevalecem sobre a escrita. A forma prevalece sobre o conteúdo. O reflexo prevalece sobre a reflexão. O instantâneo prevalece sobre o passado e o futuro. Os écrans enlouquecem-nos, são a droga eletrónica da colónia virtual. É preciso aprender a lidar com o risco moral, os passageiros clandestinos e os caçadores furtivos.
Em sexto lugar, o medo como a arte de governar. Os medos que paralisam: a vigilância, a rastreabilidade, a pegada individual, o policiamento. O terror, a guerra, o clima, o esgotamento dos recursos, o pânico, o suicídio, o medo, contribuem para baixar as expetativas e gerar depressões. Os efeitos externos da tecnologia, a humanidade não controla esses efeitos. Cuidado, pois, com as narrativas catastróficas, porque paralisam. É preciso aprender a lidar com a ecologia do medo global.
Em sétimo lugar, estamos perante uma mudança civilizacional de grande alcance. O homem começa a sobrar com as máquinas inteligentes, a automação e a computação avançada. Os inativos crónicos começam a aparecer em vez dos desempregados temporários. Somos dispensáveis, a produtividade é transferida das máquinas para o trabalhador/colaborador. A tele distância ou trabalho ex situ alterna, cada vez mais, com o trabalho in situ. É preciso aprender a lidar com a domicialização e a alternância do local de trabalho.
Em oitavo lugar, a alteridade da relação socio-laboral é um pêndulo que oscila permanentemente e que provoca uma corrosão do carácter pessoal. O ambiente de trabalho, a esfera pública comunicacional e o ambiente sociocultural precisam de ser reavaliados e revalorizados para compensar e recompensar a solidão induzida pelos écrans e os automatismos dos dispositivos tecno-digitais. É preciso aprender a lidar com o fundamentalismo tecnológico e a propaganda do progresso.
Em nono lugar, o risco sistémico aumenta. Todas as técnicas e tecnologias têm um grande potencial para os acidentes. O comboio descarrila, o navio naufraga, o avião despenha-se, a internet tem uma potência de acidente incomparável. É a ditadura da velocidade e a teoria do acidente, da velocidade móvel para a velocidade instantânea, da luz e das ondas eletromagnéticas. As crises resultam da velocidade incontrolada, os setores são afetados pela aceleração. O medo é indissociável da velocidade, a surpresa e o imprevisto. É preciso aprender a lidar com os progressos e as surpresas da velocidade.
Em decimo lugar, precisamos de refrescar o nosso pensamento político para prevenir e evitar o colapso da sociedade, a implosão das dimensões espaço-tempo, a crise da alteridade, a crise da urgência, a instantaneidade. O medo e a urgência, o fluxo de imagens e emoções paralisam o espectador e o cidadão. A televigilância, a rastreabilidade, os ambientes virtuais, a simulação da realidade, completam esse quadro disciplinar e punitivo. É preciso compreender o alcance e aprender a lidar com estas limitações para não perder o controlo democrático da sociedade tecno-digital.
Notas Finais
Estas são algumas das nossas aprendizagens, necessárias para lidar com os aparelhos ideológicos da república tecno-digital. Recordo, a propósito, os valores e princípios liberais que são fundamentais para exercer o controlo democrático de uma sociedade tecno-digital. A soberania popular e a transparência dos processos eleitorais (1), o respeito escrupuloso pelos direitos humanos, civis e políticos (2), a divisão tripartida dos poderes e o respeito pelos pesos e contrapesos do sistema institucional (3), a proteção do ambiente natural e cultural e dos bens comuns da esfera pública (4).
Ora, no mundo da velocidade em que vivemos, precisamos de nos reencontrar com as dimensões espaço-tempo do sistema político-institucional democrático e reconhecer o nosso próprio ritmo de ajustamento e adaptação, sob pena de cairmos no caos, na suspeição e na violência institucionalizada. As sociedades que nos precederam eram mais ritmadas, tinham as suas festas e rituais, hoje esse ritmo não existe, a esfera pública está mais fragmentada e não há espaço-tempo para refletir com intenção. Precisamos de encontrar rapidamente uma inteligência do movimento e uma economia política da velocidade para salvaguardar os direitos humanos, civis e políticos e preservar a nossa saúde mental. Um Estado dito democrático, porém, cada vez mais securitário, uma sociedade civil, porém, cada vez mais para-civil, um banco central de dados, porém, cada vez mais vigilante e orwelliano e um espaço público aberto, porém, cada vez mais alucinante e vertiginoso é o que, de todo, nós, humildes cidadãos, não precisamos.

