Corpo do artigo
Amanhã à noite, José Sócrates não interromperá o frente-a-frente de Passos Coelho com António Costa no Museu da Electricidade, soltando faíscas. Não emitirá comunicados nem declarações públicas anunciando projecções de futuro como fez Maria de Belém ao proclamar - com uma nota à Comunicação Social durante a entrevista de António Costa em directo na SIC Notícias - a sua intenção de candidatura às próximas eleições presidenciais (à semelhança do PCP, o PS "real" não suporta a ideia de não ter um candidato às presidenciais que apareça dentro do partido). O ex-primeiro-ministro tem uma noção mais ampla do peso que pode ter na falência técnica do PS após as mais recentes sondagens que acendem os faróis ao empate técnico entre socialistas e a coligação de direita nas legislativas. Caso António Costa e "o seu PS", derrotado, descambe para a solitária sem pulseira, ninguém perdoará a Sócrates a perturbação na campanha e António Costa ganharia, inclusivamente, uma bela desculpa para a derrota. Nem Sócrates tem interesse em que Costa se desculpe do que quer que seja, excepção feita à falta de apoio, claro e inequívoco, na luta contra a judicialização da política perante o caso particular do último e mais recente "preso político" português. As verdadeiras armadilhas para Costa não estão presas domiciliariamente.
Um dos problemas do PS nestas eleições é a sua fragmentação interna, a sua rendilhada teia de interesses intestinos e rendilhados históricos. Neste mapa do Rato, António Costa não tem aparecido mal acompanhado embora aparente sempre alguma solidão. Poder-se-á pensar que o líder do PS é fruto e vítima das suas próprias circunstâncias, da forma e do timing utilizado na conquista do poder interno no partido, momento em que tantas vezes foi acusado de baixo tacticismo e elevado sentido de oportunidade para o momento em que conveniência pessoal assalta. A ideia que fica é a de que o PS não se consegue desligar das suas fracturas internas para se ligar ao presente, mesmo quando a obrigação dos socialistas deveria estar no compromisso férreo de quebrar o hiato histórico do funeral societário que a coligação preparou e executou durante a legislatura. Muitos "ismos", muitos "istas", numa prisão que não é preventiva: soaristas, guterristas, socratistas, seguristas (os mais entroncados ramos da árvore, colocando os sampaístas superiormente e os alegristas entre as correntes de ar), uns mais do que outros mas quase todos - estes - que habitam o todo sem excepção, armadilhados, atados com pulseira analógica ao passado interno do PS.
Quando alguns analistas, bem recentemente, apontavam o pecado da bicefalia à anterior liderança do Bloco de Esquerda (BE), criticavam com facilidade o visível mas não o que sempre esteve à frente dos seus olhos. Olhando para as sucessivas crises entre os partidos que formam esta "irrevogável" coligação e para as eternas guerras da sucessão no PS, a anterior repartição de líderes no BE era uma acanhada amostra de fragmentação na tentativa de equilíbrio interno. No PS, actualmente, o ar deve ser bem mais irrespirável do que aquele que já não se respirava nos piores dias da coligação.
José Sócrates vai falar e - quando falar - fará o barulho político que premeditar, sem perder a pose de Estado que um "preso político" tem que manter na defesa das suas superiores conveniências e dos interesses de um partido que ainda tem muitos dos seus a correr por dentro. Ninguém espera que Sócrates intervenha na campanha eleitoral do PS a partir do sofá para desatar a partir tudo em cacos. Quem já menosprezou a capacidade política de Passos Coelho e Paulo Portas, pensando que bastava "fingir de morto" para ganhar estas eleições, não poderá também menosprezar o animal político que habita em Sócrates. Infundado este receio, todos os dias testemunhado pelos comentadores políticos de direita (em absoluta maioria na Comunicação Social sem que alguém pergunte porquê ou como), de que Sócrates se comporte como um elefante na loja de porcelanas. Longe de ser uma casa de porcelanas - se alguma vez o foi -, há muito que no Largo do Rato as famílias se encarregaram de partir toda a loiça. Após tanto tempo na agenda mediática, o impacto de Sócrates no PS só se fará verdadeiramente sentir depois das eleições num hipotético cenário de derrota de António Costa. Preventivamente, a parte do PS que ainda vai a eleições para ganhar, deveria preocupar-se bem mais com quem anda à solta dentro de casa.
O autor escreve segundo a antiga ortografia