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A aparente contradição entre a personalidade de José Sócrates e a de João Araújo, seu advogado, é uma das melhores leituras romanceadas que o ano de 2014 nos deixa como herança, prólogo de um processo complexo de defesa do ex-primeiro-ministro que ameaça tornar-se numa peça de "cartoon" viral a vários tempos, animado em supetões constantes à medida que os dias arrastam a prisão preventiva de Sócrates para a segunda linha das notícias. Com João Araújo, a garantia. Estará para sempre na ordem do dia o levantamento cívico contra a medida de coação aplicada ao seu cliente. Para além da sua indisfarçável competência, João Araújo é um agitador e Sócrates sabe que não pode arriscar o esquecimento quando o "prime time" noticioso mudar as agulhas. Neste sentido, sendo aparentemente tão diferentes, José e João são ambos agitadores profissionais com um charme indesmentível.
Antes, agora e - suspeito - depois, José Sócrates será sempre um sedutor. Independentemente do desfecho jurídico que a Justiça lhe trará, não vejo como Sócrates possa deixar cair a máscara dele mesmo, aquela com que conquistou o país a partir de Vilar de Maçada, a mesma com que saiu de portas rumando a um retiro quase monástico para Paris (há travessia do deserto mais sedutora do que cursar Filosofia num mestrado em Paris?), a mesma com que voltou (antes do tempo previsto e razoável) para apimentar o comentário da actualidade política, ainda efervescente do seu nome e do seu legado. Não resistiu a voltar porque um sedutor não resiste a voltar para reconquistar o afecto. Precipitou-se como qualquer um se precipita quando entende que é mais do que tempo de ajustar contas com quem não se deixou seduzir. A escolha de João Araújo para a sua defesa, quando todos esperavam a entrada de Daniel Proença de Carvalho no Tribunal Central de Instrução Criminal há cerca de um mês, é o prolongamento lógico de um sedutor incapaz de seduzir enquanto encarcerado. Pela necessidade de alguém que defenda o seu bom nome com convicção e brilho. A entrevista de João Araújo a Judite Sousa é uma súplica veemente de José Sócrates para que ninguém esqueça que a máscara também foi o homem.
João Araújo não precisava de ter dado uma entrevista em sucessivas fintas, dribles, passes em toque curto, ironizando com estilo frente à entrevistadora se quisesse ter lançado três ou quatro ideias fortes sobre o que considera ser um processo político que nem sequer chegará a julgamento. Apostando, desde o primeiro dia, na demonstração da sua personalidade mordaz, o olhar desvia-se dos factos e cria uma cortina de fumo onde até as evidências se negam com a facilidade de um sorriso espertalhão. O que o advogado de Sócrates tem apresentado em praça pública é um conjunto de competências de comunicação que lhe permite ser quase inimputável perante a ausência de respostas a questões precisas e pertinentes a que urge responder urgentemente. Fugir a essa responsabilidade por mais tempo é vulgarizar a prisão, pela primeira vez na nossa história, de um ex-primeiro-ministro.
É desarmante. Não se pode deixar de criar um laço de empatia com quem chega ao processo apresentando-se como "advogado estagiário" para pouco depois ouvirmos os sinos repicarem o seu histórico profissional: este "estagiário" já defendera a ex-mulher e a mãe de José Sócrates e também esteve envolvido no processo jurídico das FP25. Aparentemente com traços tão distintos, João Araújo é, em liberdade, o braço armado emocional de José Sócrates, preso. Como poderia Sócrates enfrentar o julgamento popular sem um advogado que o defendesse com neblina, charadas, palavras em contrapicado, jogos de estilo e metáforas entre baforadas ao mais cativante estilo "vintage"? O Campus de Justiça que o próprio ex-primeiro-ministro inaugurou não podia ser palco para um advogado cinzentão no período mais negro da sua história pessoal.
Resta saber quando José e João identificarão o "timing" em que já seduziram o seu universo, abrindo espaço para a inevitável armada cinzenta de defesa que aparecerá perante o juiz Carlos Alexandre caso Sócrates chegue mesmo a ser julgado. Transformar uma entrevista pretensamente esclarecedora num palco para jogos florais sobre a vida e o "savoir-faire" é tão memorável que só pode ser encarado como um acto único. Não é passível de réplica. Todos já sabemos e adivinhamos o estilo. É essa mesma uma das maiores pendências da sedução: só pessoas diferentes se podem seduzir da mesma forma.