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Talvez muitos leitores do JN conheçam o interessante filme Truman Show, interpretado por Jim Carrey. Baseia-se numa história simples: há um homem (o sr. Truman) que vive dentro de um cenário televisivo desde criança e desconhece que existe um mundo, real, no exterior. Um país inteiro segue o reality show pela televisão e discute as crises e alegrias daquele homem. Toda a gente sabe (incluindo os personagens que lidam diariamente com ele - mulher e amigos) que o seu mundo é falso. Mas ninguém lhe diz.
Impossível não me lembrar do filme por estes dias. Sócrates, um homem que vive uma vida inteira assente numa narrativa (como ele gosta de dizer) ditada pela lógica da tática partidária e da manutenção do poder, senhor de uma notável facilidade em gerir o dinheiro dos outros em contraponto à total inexperiência face à vida da gestão de uma PME durante uns anitos. Geriu o país como se a fuga para a frente conduzisse à salvação final. Uma salvação assente na ideia de crescimento a qualquer custo, bombeada por uma colossal dívida, eterna, como ele disse um dia.
Sócrates é a estrela/vilão deste filme. Aliás, a discussão sobre o seu direito a estar ou não na RTP é um episódio sintomático dessa bolha de irrealidade: os cidadãos-espectadores debatem animadamente sobre se deve ou não ressurgir a estrela deste Truman Show que Portugal é. Como se Sócrates, sozinho, pudesse mudar a narrativa do nosso destino pelo poder da palavra.
Sócrates disse ontem muitas coisas que são verdade. A sua verdade. Uma verdade em que podemos confiar de forma parcial. Porque os detalhes permitem outras perspetivas. Por exemplo: "A minha governação não levou ao pedido de ajuda externa...", disse Truman Sócrates. Claro, foi o contágio da Grécia... Mas porquê Portugal e não a Suécia ou a Holanda? O crescimento de Sócrates era um horizonte falso, que ele continua a não saber que se tratava de um cenário de estúdio. Pena não o terem deixado chegar a bater com o nariz na tela de cartão que ele julgava ser uma nova estrada...
Daí a manutenção desse pressuposto, ainda hoje: "Portugal deve parar de imediato com a austeridade", disse ontem. Ouve-se isto e Passos Coelho de repente ressurge como um ator honesto... A realidade demonstra, afinal, que o excesso de crença de Sócrates no crescimento é tão tóxico como a dose de austeridade de Passos.
No momento mais quente da entrevista soubemos entretanto os escaldantes detalhes dos bastidores da novela: Sócrates, traído por Cavaco, que abre em 2011 o caminho ao fraquíssimo Passos e ao seu círculo próximo, que nos conduzem entretanto para um festival de irresponsabilidade circense e onde, na prática, descobrimos, quem manda é um homem pequenino e que fala devagarinho - Gaspar. Cada um destes atores com uma verdade sua, tática, sem um rumo grande, de longo prazo, verdadeiro, apoiado em pessoas sólidas. Daí o desespero dos cidadãos.
O Portugal em que milhões de portugueses vivem não se pode confundir com a novela do Sócrates Truman Show onde tudo é possível - basta querer. Portugal tem poucas empresas internacionais, pouco crédito, baixa poupança, uma grande dívida do Estado, um défice que só pode diminuir gerando desemprego de funcionários públicos, famílias e empresas endividadas porque todo o circuito financeiro mundial assenta em crédito (fácil). Que importa se o território é sistematicamente devastado por alguns projetos, sempre essencialíssimos para criar emprego e salvar esta geração, mas destruindo os recursos para décadas ou séculos? O desemprego é consequência de um processo histórico de desinvestimento nas empresas e canalização do capital para rentabilidades financeiras que, como se viu, eram irreais, ou para o imobiliário especulativo. Mas para quê discutir o essencial?
As últimas viagens que pude fazer pela Ásia e América fazem-me ter a certeza de uma coisa: o Mundo continua a mover-se a grande velocidade, a crescer. Ninguém quer saber de Portugal. Por isso temos de mudar este Governo pedindo a Passos que saia pelo seu pé, e deixar Sócrates, e o seu canto de sereia, a falar sozinho. O Truman Show é um filme viciante mas está a desfocar-nos do tempo para salvarmos a nossa vida e o país.