<p>Quis o acaso que estivesse de férias no Egipto no dia em que ocorreu o atentado na igreja de Alexandria. A tragédia causou consternação entre a minoria copta, que logo se manifestou nas ruas, criticando a passividade das autoridades e do aparelho judiciário perante os sucessivos ataques de que tem sido vítima. A revolução que agora grassa pelas ruas e teve o seu rastilho em Tunes, tem outra dimensão e resulta de um mal-estar que pude testemunhar. Bastava, aliás, conversar com qualquer cidadão egípcio para perceber que existia um problema crónico de corrupção, que minava os alicerces do Estado e contribuía para o fraco desenvolvimento económico e social do país. </p>
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Junto à cidadela do Cairo, à vista da sua mais importante mesquita, está em construção um horrível edifício em betão. Explicaram-me, em tom resignado e com travo irónico, que se tratava de um projecto imobiliário que fora muito contestado mas avançara por ser propriedade de "alguém importante". Aliás, o Cairo é uma cidade de contrastes, onde há luxuosos hotéis e centros comerciais a poucos metros de distância de bairros pobres e apodrecidos, uma metrópole onde os novos condomínios privados em Nasr City, junto ao aeroporto, são promovidos por cartazes em que aparecem famílias com ar ocidentalizado e feliz, enquanto à sua porta desfilam cortejos de autocarros carregados de gente com ar miserável.
Não admira, por isso, que a população se tenha revoltado. O regime está a viver os seus últimos dias e é provável que o caos instalado, agora com contornos de guerra civil, dê lugar a uma trégua que permita a realização de eleições democráticas. E, nessas eleições, o anunciado vencedor será a Irmandade Muçulmana, que tem grande influência na sociedade egípcia, apesar de ter sido esmagada por Nasser e, depois de ter sido tolerada por Sadat, ter sido perseguida por Mubarak, que apenas permite que os seus candidatos se apresentem às eleições na condição de independentes. Os fundamentalistas são vistos pelos mais pobres como menos corruptos, e gerem uma rede de instituições de solidariedade que financiam graças ao apoio de outros países árabes e dos muitos egípcios que para lá emigraram. E, nesses países, não existe democracia nem a tolerância religiosa que, apesar das queixas dos coptas, ainda ia subsistindo no Egipto.
A alternativa chama-se El Baradei, que apesar de ser popular na Europa, e ter as melhores das intenções reformistas, não dispõe de uma rede com influência na sociedade egípcia, onde é pouco conhecido. E, tal como aconteceu no Irão há mais de trinta anos com Banisadr e Rajavi, que participaram na revolução e que também eram depositários das esperanças democráticas, mas não resistiram ao fanatismo dos clérigos, é muito provável que, no final, o Egipto caia nas mãos de uma nova opressão.
Por isso, mesmo que haja eleições livres, é previsível que elas nunca se venham a repetir. Pela via eleitoral, o Egipto corre o sério risco de se entregar nas garras de uma outra ditadura, certamente mais violenta, intolerante e obscurantista. O que quer dizer que a minoria copta, que hoje representa entre 8 a 10% da população do país, e as raparigas de cabelos soltos que hoje se manifestam na rua pela liberdade, poderão, com a queda do regime, vir a estar condenados, pela via democrática, a uma repressão ainda mais brutal. E, não deixa de ser irónico constatar que se o regime de Mubarak fosse tão cruel como o de Teerão, a revolta das ruas do Cairo há muito que teria sido esmagada.