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Este jornal noticia recorrentemente histórias que são pedidos de auxílio e apelos à solidariedade: pais que angariam fundos para tratarem os filhos doentes do outro lado do mundo; pessoas marginalizadas a quem a porta do emprego se fechou e que procuram ajuda para arranjar trabalho; vidas inteiras que sucessivos infortúnios atiraram para carros, ruas ou aeroportos; cidadãos que choram a morte de alguém amado de calculadora na mão… a lista continua. A maior parte dos casos é, por norma, recebida pelo público com intenções de que tudo corra pelo melhor e ações que fazem com que, de facto, tudo acabe por correr.
Os fundos arranjam-se, o emprego também. A casa, a viagem ao estrangeiro, a cadeira de rodas, o medicamento caro, o dinheiro para as despesas de funeral. As histórias comovem as redes sociais, onde se cria uma onda gigante de solidariedade e uma rede de amparo. E que bom é viver entre um povo empático que se compadece com a angústia e a necessidade alheias – digo-o sem ironia. Mau é perceber que às vezes a onda engole e a rede fura. Que a solidariedade é seletiva e a empatia pela necessidade varia consoante o necessitado. Que o espírito tantas vezes compassivo é substituído pelo combativo.
Aconteceu esta semana, com a notícia de uma jovem de 19 anos, natural de São Tomé e a estudar no Porto, obrigada a sair do quarto onde vivia por estar grávida. A estudante, que com sete meses de gestação continua a ir às aulas, está desde 2023 em Portugal com uma bolsa de estudos, ao abrigo de um protocolo celebrado entre a escola que frequenta e uma instituição são-tomense. A contar tostões, ela e o namorado vivem os dias em sobressalto, com medo que o filho lhes seja retirado por o salário dele não ser suficiente para arranjarem uma solução estável para os três. Mais uma história de carência num país onde o direito a habitação digna para todos está na Constituição e em mais lado nenhum.
Os comentários ao caso chegaram em forma de murro, um golpe atrás do outro. Traduzem uma perversidade e malícia que escolho não reproduzir neste espaço, pelos danos que já causaram e podem causar. Uma grávida à procura de um quarto para viver - nem sequer uma casa - e atormentada pela ideia de não poder ser a mãe que quer ser não é sempre lamentável, parece. Porque é imigrante, porque não é branca, porque é estudante, porque está grávida aos 19. A mesma idade que tinham muitas das nossas mães, tias, avós e bisavós quando tiveram os seus filhos. Eles e elas também lá estão. Nesses repositórios de opiniões onde, sob o escudo da liberdade de expressão, cada um diz o que quer.
Numa altura em que se dá especial destaque ao potencial impacto nocivo das redes sociais – ou da sua desregulação – nos comportamentos de adolescentes, que encontram lugar em movimentos que propagam ideais supremacistas, misóginos e violentos, não esqueçamos que o exemplo vem de cima.