<p>1 - A imagem que retenho do 5 de Outubro de 1910 é a mais comum: José Relvas proclama a República na varanda da Câmara de Lisboa. Há dez anos, uma televisão fez um documentário sobre o século XX e mostrou um filme desse episódio. Vê-se José Relvas a gesticular perante uma pequena multidão de cerca de 1500 pessoas. Enquanto a câmara foca o orador, reconhece-se ao fundo, caminhando em direcção ao centro da cidade, um grupo de homens e mulheres que ladeiam 4 ou 5 carros de bois carregados até cima. Percebe-se que se tratam de camponeses vindos da outra margem, presumivelmente para venderem os seus produtos na cidade e que foram apanhados pela revolução. O que torna aquele filme extraordinário não é apenas o seu testemunho histórico da queda da monarquia - aquilo que o faz revelador é que nenhuma daquelas pessoas parece voltar a sua atenção para o que estava a acontecer a poucos metros. Não viraram as cabeças uma só vez para verem a proclamação da República. Continuaram ainda mais impassíveis do que os autênticos bovinos que os acompanhavam e devem ter chegado a casa sem saberem que o país já não tinha rei... </p>
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2 - Quarta-feira passada, encontrava-me em Lisboa quando soube que o Governo explicaria as medidas de combate à crise (outra vez!) numa conferência de imprensa à hora dos telejornais. Vi-me aflito para achar um lugar onde pudesse ver a comunicação: na vizinhança da zona onde razões de agenda me obrigavam a estar, as televisões sintonizavam esperançosamente o jogo europeu do Benfica. Finalmente, já a rasar a hora, consegui encontrar um cafezito onde imperava uma novela de um canal generalista.
Estavam uma dúzia de pessoas no café. Duas mulheres, logo atrás de mim, fincavam o olhar na novela com a vigilância febril de um corretor perante as oscilações bolsistas. Mais arredados, três homens conversavam aparentemente alheados do mundo em redor. Os funcionários encostavam-se nos dois lados do balcão, também absortos nas vicissitudes da novela. O resto era composto por solitários de ocasião, como eu, que por ali se mantinham, a maioria ostentando o olhar perdido de quem já não se lembra bem do que foi ali fazer.
Nisto, Sócrates começa a falar. Instantaneamente, todas as atenções se desligaram da televisão. As duas mulheres atrás de mim iniciaram uma estranha espécie de diálogo-monólogo em que ambas falavam fervorosamente ao mesmo tempo sem que essa simultaneidade parecesse prejudicar a conversa. Os três homens continuaram a divagar em surdina cada vez mais concentrados nas cervejas que se amontoavam à sua frente. Os funcionários começaram a limpar nervosamente as mesas com o afã de que quem queria sair dali o mais rapidamente possível. Ninguém voltou a olhar para a televisão, excepto eu.
Espantado, escutei a catanada de 10% nos salários dos funcionários, a descida nas prestações sociais consumada pelos supostos campeões desse modelo de Estado e uma nova subida do IVA. Pressenti mais uma golpada orçamental com a receita extraordinária do fundo de pensões da PT. E ouvi a esquiva em extinguir os institutos e fundações públicas cuja razão de ser ninguém consegue explicar já que são incontestáveis pleonasmos administrativos.
À minha volta ninguém ligava patavina aos ferrões que o primeiro-ministro e o ministro das Finanças arremessavam. Quando acabaram de nos fustigar, sem nunca terem tido a humildade de assumirem qualquer réstia de culpa na desgraça que nos está a acontecer, tudo no café continuou como se nada tivesse passado.
3 - Precisamente como os espectadores involuntários do 5 de Outubro de 1910, aquelas pessoas do café, em 2010, devem ter ido para suas casas sem suspeitarem que vão passar a ganhar menos e que vão pagar muito mais ao Estado. Quando o souberam, provavelmente ficaram pasmados. Nunca se recordarão que quando o anúncio se deu, estavam a ver novelas ou a bebericar o seu desinteresse pelos assuntos que agora os atingem em cheio. Nunca enxergarão que foi precisamente a sua falta de atenção mínima nas coisas da cidadania que nos fixou na tradição irremediável de sermos o povo pior governado de entre aqueles com que gostamos de nos comparar.
Hoje, tal como há cem anos.
