Goste-se ou não da personagem Emmanuel Macron, o facto de o presidente francês ter conseguido pôr todo o mundo a tentar encontrar a melhor tradução possível para "emmerder", quando se referiu ao querer chatear o mais possível os não vacinados, é digno de vénia. Se os não vacinados por opção têm o direito de fazer essa escolha, é mais do que justo que a restante população queira "emmerder" com convicção quem opta por ignorar a ciência e os números evidentes que todos os dias surgem na comunicação social, dando conta de uma eficácia para lá daquela que se poderia imaginar da "poção mágica injetável".
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E, quando confrontado com a rudeza da declaração, Macron não se agachou nem pediu desculpa, como é comum muitas vezes quando se tenta fazer controlo de danos. Insistiu. Sublinhou que não foi um engano. "Quando alguns fazem da sua liberdade, que se torna numa irresponsabilidade, um slogan, não só colocam em perigo vidas, mas restringem também a liberdade dos outros", afirmou ao lado de Ursula von der Leyen, presidente da Comissão Europeia, que visitava Paris na última semana.
Mas qual é a novidade deste discurso? Só a frontalidade, porque aborrecer os não vacinados é o que todos os Governos tentam fazer neste momento, restringindo os seus movimentos e dando benesses ou libertando das amarras da covid quem já se vacinou, tal como fez Portugal ao isentar os vacinados com dose de reforço de qualquer tipo de testes.
Esta é a forma certa de "emmerder" os não vacinados. Já por cá, por entre medidas acertadas e problemas de comunicação, lá se vai conseguindo aborrecer quem ainda não se decidiu a vacinar contra a covid-19, mas com alguns buracos na estrada. Compreendo que a ânsia de ver a população totalmente vacinada seja grande, mas não podemos cair na ratoeira de querer amolgar um pouco a realidade para caber numa narrativa, que sabemos correta.
Quando Lacerda Sales anunciou que 90% dos internados em cuidados intensivos seriam não vacinados, naturalmente a frase fez manchetes nos jornais. Mais tarde, o secretário de Estado da Saúde emendou a mão, dizendo que se tinha tratado de uma estimativa ao falar com colegas, e avançou com 60% de não-vacinados internados. "A realidade é heterogénea. Diverge de instituição para instituição: numa poderá ser 90%, noutra 70%, noutra 58% ou 60%", explicou, dando armas ao movimento negacionista e antivacinas, que frequentemente é acusado de mentir ou distorcer a realidade. Com esta frase, infelizmente, Sales conseguiu "emmerder" quem luta pela ciência e pelos factos.
*Jornalista