Tenho tido sonhos estranhos. Provavelmente já os tinha antes, não tinha era vagar para me lembrar deles.
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Quando acordava já 17 minutos atrasada eles esvaíam-se imediatamente, e voltavam, como diria André Ventura, "para a terra deles". Mas agora a terra dos sonhos é aqui. Quanto mais não seja porque não há grande margem para efetivarmos nada. Voar até um qualquer destino de férias? Só em sonhos. Ver a nossa equipa de futebol celebrar o título numa praça ou avenida? (prefiro a segunda, a primeira é um pesadelo), só em sonhos. Visitar a nossa avó ao domingo para o habitual cozido? Só em sonhos. Fazermos nós um cozido? Só em sonhos. Calma. Um pão ainda vá que não vá, agora uma refeição que implica utilização de um trem de cozinha completo já é pedir muito. Mas descobri que esta coisa de ter sonhos bizarros durante a quarentena é um mal geral. Há até um site, "I dream of Covid" em que as pessoas relatam os sonhos mais esquisitos que têm tido. Um rapaz de Pensilvânia sonhou que estava numa loja de donuts, com a família, deleitando-se com um desses bolos, quando entra uma amiga dos pais, que lhe estende a mão para o cumprimentar. Não querendo ser rude, acede ao "passou-bem", e continua a comer o seu donut, lambendo até os dedos. Enquanto isso, pensa que aquele gesto poderá ser a sua sentença de morte mas continua a comer porque, nas suas palavras "é tão doce e delicioso". Não consigo censurá-lo! Isto para mim seria um duplo pesadelo: "porra, toquei na mão de uma pessoa potencialmente infetada, e voltei a quebrar a dieta!". Há sonhos para todos os gostos, partilhados neste site: desde o israelita que sonhou que atravessava Tel Aviv arrastando a sua cadeira do escritório e acabava multado, até ao neozelandês que tinha de fazer a primeira parte do concerto dos U2 e estava angustiado por não ter nada para vestir... e que acaba aliviado quando descobre que o concerto foi cancelado devido ao falecimento de Bono Vox por covid-19. Não sei se estamos a ficar loucos ou simplesmente muito mais criativos (nem que seja a dormir). Isto provavelmente são pessoas que até aqui só tinham aqueles sonhos típicos, como perder os dentes ou ir para a escola nu. O confinamento serviu para alargarem horizontes na cama (isto parece uma frase do Quintino Aires, naqueles conselhos sexuais que dá na TV Mais. Entusiasmei-me com este movimento global de partilha de delírios noturnos e deixo-vos aqui um pequeno apanhado das coisas com que sonhei e me levam a crer que estou apanhada:
- via o virologista Pedro Simas no "Programa da Cristina", e que este confessava que o que queria mesmo, mais do que ir lá falar de epidemias, era ir lá cozinhar;
- a TVI exibia uma reportagem com o rodapé "Covid-19: Norte de Portugal mais castigado: população menos educada, mais pobre e envelhecida". E eu que ia jurar que sermos menos educados nesta fase é uma espécie de antivírus: quem educadamente cumprimenta terceiros tem muito mais hipóteses de ficar infetado;
- a RTP respondia à TVI, como se isto fosse aquele filme do Eminem em que havia batalhas de rap;
- uma conhecida marca de bolas de Berlim anunciava que faz entregas em casa e tem, entre outros sabores, carvão ativo;
- presos saíam de Custóias, com um papel na mão sobre as normas para evitar a Covid-19 e corriam para os seus familiares e amigos, abraçando-os e beijando-os, desrespeitando logo a primeira norma;
- um grupo de polícias cantava os parabéns ao filho de Kapinha, ex-integrante da banda D"Arrasar (o Kapinha, não o filho);
- enviavam-me uma petição de pais para que o Governo reabra "escolas, creches e ATL" a partir de 1 de maio". Nota-se que as pessoas estão trocadas com isto do isolamento, já nem sabem que 1 de maio é feriado. O argumento mais forte na petição era "As crianças não são criminosos (mas, estão a ser tratadas como tal), obrigadas a uma pena de encarceramento (ainda que em casa), e a uma pena de estudo (dada a carga de TPC a que estão sujeitas), sem contacto com colegas". Realmente, até os que saíram de Custóias estão melhor....
- a CGTP avisava que ia comemorar o 1.o de Maio na rua. Sim, a rua. Aquele sítio onde estamos quase impedidos de ir desde meio de março. Calculo que as deslocações dos manifestantes sejam todas entre farmácias de serviço e supermercados.
- o Governo anunciava intenção de abrir creches e cabeleireiros em maio, cedendo claramente à pressão das mães que já estão a arrancar cabelos, em casa.
Acordei. Alagada em suor. No escuro, procurei o telemóvel e fui pesquisar cada uma destas coisas. Tudo verdade. Afinal, não era um sonho. Nem sequer a parte das bolas de Berlim de carvão ativo. Voltei para a cama.
*Humorista